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OMBUDSMAN
Os tiros no shopping
RENATA LO PRETE
"Há alguns dias, uma pequena nota na Folha descrevia
uma chacina ocorrida na periferia paulistana. Três jovens
conversavam no portão de casa
quando um grupo chegou atirando. Um deles morreu na hora. Outro conseguiu entrar na
casa. Foi morto no banheiro.
Uma menina de 14 anos foi encontrada debaixo da cama e
morta à queima-roupa."
"Os matadores teriam comentado depois que houve um erro:
aquelas não eram as pessoas visadas. É possível imaginar o terror da jovem, assassinada sem
entender o que estava acontecendo, assim como a dor de seus
pais e parentes. No entanto, nada disso era relatado na pequena nota."
"Hoje abro o jornal e vejo nove páginas sobre o caso do atirador no cinema. Qual o motivo
de tamanha diferença?"
A pergunta se repetiu em várias das mensagens que recebi a
propósito da cobertura da chacina no MorumbiShopping.
É simples justificar o destaque
que foi dado a ela. Lembro do
que ouvi certa vez sobre furos
jornalísticos: você pode não saber defini-los, mas reconhece
quando está diante de um. Assim é também com a pura notícia. Tomados por qualquer ângulo, os crimes cometidos pelo
estudante de medicina Mateus
da Costa Meira pertencem a essa categoria.
Mais complicado é explicar o
comportamento mecânico do
jornal diante da violência na
periferia paulistana. São as notas curtas de que fala o leitor.
Informam, na melhor das hipóteses, nome e idade das vítimas.
À diferença das que foram mortas no cinema, estas não têm
rosto nem história.
Pode-se dizer que as chacinas
nos bairros pobres não têm o
ineditismo da ação no shopping
(tradução: tornaram-se tão rotineiras que já as consideramos
parte da paisagem).
E que os elementos da história
do cinema são todos muito próximos do público da Folha (tradução: o público da Folha não
vai à periferia).
E que todos querem saber por
que um rapaz criado no leite
gordo compra uma metralhadora e abre fogo no meio da sessão de "O Clube da Luta" (tradução: não há mistério nas outras chacinas, invariavelmente
atribuídas pela polícia a "dívidas de drogas").
Nenhuma das três explicações
torna menos legítimo o questionamento do leitor, bem ilustrado por um caso da semana que
passou.
A "chacina do casamento", de
tão chocante, rompeu o formato
habitual da nota curta. Ganhou
chamada e foto na capa do jornal de segunda-feira. Não chegou perto de ocupar nove páginas, mas a única que lhe foi destinada era capa do caderno São
Paulo.
Como o estudante de medicina, os quatro encapuzados atiraram a esmo e mataram três
pessoas. Houve ainda nove feridos entre os cerca de cem convidados da festa de casamento,
realizada em um salão da Cohab 2, em Carapicuíba.
Apesar do destaque incomum,
uma característica da cobertura
padrão de chacinas foi mantida.
Na edição do dia seguinte, nada
sobre investigações. Apenas um
protesto do cantor de pagode
que desenvolve um projeto social na região. Depois disso, só
uma referência escondida, na
sexta-feira, à identificação de
suspeitos.
São histórias que não têm continuidade. Em sintonia com as
autoridades, o jornal dá de barato que dificilmente serão esclarecidas.
Nos últimos dias, reportagens
em série especularam sobre as
motivações de Mateus Meira.
Mas a expressão "acerto de contas" é considerada suficiente para descrever o que aconteceu em
Carapicuíba.
De volta à pergunta do leitor,
o problema não está na atenção
dada ao caso do shopping, sob
todos os aspectos extraordinário, mas na "tamanha diferença" de que fala a carta.
Não se espera que o jornal dê
tratamento igual a histórias de
características distintas, mas seria bom que tivesse preocupação
em mostrar a face, e não apenas
os números, da violência que
não é de cinema.
Costuma ser assim com casos
que mobilizam a Redação por
dias a fio. No início, há abundância do que dizer. Depois, a
necessidade de encher páginas e
páginas na tentativa de explicar
o inexplicável acaba resultando
em muita bobagem.
Exemplos retirados da Folha
de domingo passado, quatro
dias depois dos tiros:
- "Pelos números frios das estatísticas, cada sessão de cinema com cem espectadores pode
esconder um Mateus. Segundo
estudos, 1% dos adultos sofre de
esquizofrenia ou outro tipo de
paranóia" (abertura da reportagem de capa do caderno São
Paulo).
- "Seu filho tem um distúrbio
mental?" (título de quadro no
mesmo caderno).
- "Uma sociedade que produz
homens ambíguos e mulheres
duvidosas deve forçosamente
produzir alguns delinquentes"
(frase retirada de um livro de citações e editada no quadro "É
culpa da sociedade?").
- "Só faltava isso!" (título da
capa da Revista da Folha. A reportagem misturava no mesmo
balaio coisas tão distintas
quanto o acidente da TAM, as
rebeliões na Febem e as mortes
no shopping. Embrulhava tudo
com o inevitável "livro lançado
nos EUA" e concluía que, "a cada tragédia, crescem os temores
dos paulistanos").
Para quem tem tomado ao pé
da letra bilhetes e declarações
atribuídos ao atirador, vale notar que a pior derrapada da Folha nessa cobertura foi sua "entrevista exclusiva" com Mateus
Meira, publicada no sábado, 6
de novembro. A abertura do
pingue-pongue dizia que as respostas haviam sido dadas "por
escrito".
Na quarta-feira passada, a
partir de manifestação do advogado do estudante, o jornal se
viu obrigado a explicar que as
respostas não foram escritas por
Meira, e sim anotadas por um
intermediário que aceitou levar
as perguntas até ele.
O advogado contesta a veracidade das declarações. Diz que
não são de seu cliente. Pode ser
estratégia da defesa, mas isso
importa pouco.
O fato é que a Folha enganou
seu leitor ao vender aquilo como "entrevista por escrito", e
que não tem como garantir a
autenticidade do que publicou.
O episódio é típico do ambiente de hiperconcorrência que se
instala nessas ocasiões. O repórter olha para o lado e vê que o
"inimigo" já falou (ou anuncia
que falou) com o personagem
da notícia. Em vez de manter a
cabeça fria, o jornal adere ao
vale-tudo.
Tudo isso em troca de informação zero. A pseudo-entrevista era uma sucessão de "sim",
"não" e "não sei" que nada
acrescentou ao já sabido.
Na quarta-feira, a Folha reconheceu que errou ao omitir as
circunstâncias em que obteve as
frases. É dizer o mínimo. A rigor, era preciso ter reconhecido
que houve uma fraude.
De acordo com a mesma reportagem, entrevistas de outros
veículos estão sendo igualmente
contestadas.
Portanto, boa parte do material que vem sendo usado para
construir teorias e decifrar supostos recados do atirador à mídia está sob suspeita.
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Renata Lo Prete é a ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
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