São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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Privilégios

Na última quinta-feira, o correio eletrônico de dezenas de jornalistas em todo o país recebeu a seguinte mensagem:
"Caro jornalista, a Suzuki do Brasil está com uma promoção especial para você. Até o dia 30 de setembro os colegas da imprensa de todo o Brasil que quiserem comprar um carro zero-quilômetro, ano 2002, terão descontos especiais. Confira na tabela abaixo os modelos disponíveis e o valor da economia. Se houver interesse, entre em contato. Enviaremos mais informações para que você também leve a vida num Suzuki". Na tabela, cinco modelos, com descontos de 13,5% a 16,4%.
Não é de hoje que jornalistas recebem ofertas especiais. Em meados do século passado, isso era até mesmo previsto institucionalmente (isenções em impostos, por exemplo).
A possibilidade de compra de automóveis com descontos atraentes espalhou-se nos corredores das Redações nos anos 80, e atrações semelhantes, na verdade, nunca deixaram de existir.
Conversei com a assessora de comunicação da Suzuki, Rosa Arrais. Ela disse que seu objetivo, com a promoção, foi apenas "aproximar a empresa da imprensa de forma simpática e transparente, sem segundas intenções".
Importa aqui não tanto a meta ou o método da empresa, mas o fato de considerar "natural" a absurda existência de privilégios, no mercado, para jornalistas. Dada a força econômica crescente da informação, qual pode ser o sentido disso?
Não seria a mesma lógica que considera "normal" tentar evitar uma punição na estrada com o uso de algumas notas?
Assim como quanto ao policial rodoviário na aplicação da multa, não se pode afirmar que todo jornalista vai necessariamente deturpar conteúdos de seus textos em favor de alguma empresa que em algum momento lhe tenha outorgado um favorecimento pessoal.
Mas não se trata, aqui, de uma questão apenas de moral individual. O jornalista Eugênio Bucci, no livro "Sobre Ética e Imprensa", argumenta:
"O problema não é o que ele (jornalista) pensa de si mesmo e o fato de ele jurar que continua sendo isento mesmo desfrutando de tanta generosidade alheia -o problema é que, assim, a sua independência deixa de ser explícita. E surgem as aparências de que, não sendo explícita, ela talvez não seja tão autêntica".
A questão dos privilégios aos jornalistas, para quem visa um jornalismo crítico, independente, ultrapassa os limites da individualidade. Deve ser vista como algo formal, da estrutura da profissão -expressão de Bucci.
Não por acaso, manuais de Redação, como o da Folha, trazem verbetes e princípios bastante restritivos em relação à prática.
O que não se entende é como, até hoje, embora com mudanças na forma, ofertas espetaculares continuem a ser apresentadas -e, ao que se sabe, em boa parte aceitas-, até mesmo por e-mail.


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