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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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OMBUDSMAN

O petróleo sumiu

BERNARDO AJZENBERG

É comum receber queixas de leitores contra o que eles chamam de negativismo ou pessimismo da imprensa, especialmente da Folha. Para muitos, é como se ao jornal só interessassem os fatos ruins. Queremos também os positivos, reclamam.
Pois os jornais de quarta-feira passada deram uma notícia boa, com grande destaque -e o problema, aqui, foi que ela, na verdade, não era tão boa assim.
Trata-se do anúncio feito pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) da descoberta de um campo de óleo da Petrobras em Sergipe que seria o maior encontrado pela estatal desde 1996.
Segundo divulgou a imprensa naquele dia, esse poço conteria uma reserva estimada em 1,9 bilhão de barris, o que significa 14,5% do total de reservas de petróleo do país.
Mais: o óleo ali achado seria de altíssima qualidade, no patamar dos melhores do Oriente Médio.
Uma informação mais do que alvissareira no momento em que o mundo se municia para uma guerra dos EUA contra o Iraque e no qual -em escala evidentemente menor- a própria ANP prepara, para agosto, nova rodada de licitações para empresas interessadas em explorar petróleo no país.
Não por acaso, ainda na terça-feira, as ações da Petrobras dispararam, com alta que fechou em torno de 4%, mas que atingiu, a certa altura, 6,5%.

Engodo
Como mostra o quadro ao lado, foi heterogênea a forma como os jornais noticiaram a descoberta.
O "Estado de S.Paulo" dedicou o maior espaço. Seguiram-se "Globo" e Folha. O "Jornal do Brasil" não deu chamada na capa, apenas reportagem interna. A "Gazeta Mercantil" chamou discretamente na capa e deu, dentro, um texto pequeno. No "Valor", só uma notinha.
Embora a maioria -alguns, como a Folha, em edições mais tardias- ressalvasse no mesmo dia que a Petrobras não confirmava todos os dados da ANP, o "barulho" foi grande.
Ao final, como se esclareceu depois, a descoberta não fora nada daquilo. Para usar a palavra certa: tratou-se de um engodo.
A Petrobras emitiu nota segundo a qual nem sequer de reservas se poderia falar. Estas, na melhor hipótese e após estudos ainda em curso, chegariam a 370 milhões de barris -o que significa um campo médio, não um gigante, como anunciado. Culpou a ANP pela "confusão" e pela precipitação.
A agência replicou que não mencionara a palavra "reserva" na nota divulgada sobre o assunto, mas apenas falara em "estimativa preliminar do volume potencial descoberto". Na sua visão, houve um "mal-entendido".
Discutiu-se, ainda, até que ponto a ANP tem o direito (ou o dever) de divulgar amplamente, antes da própria Petrobras, a descoberta de algum poço.

Falhas
Independentemente do embate Petrobras-ANP (sobre o qual falarei mais adiante), pelo menos duas falhas jornalísticas parecem claras por trás da "confusão", do "mal-entendido" e da grande notícia que não houve.
Usou-se, na mídia, a palavra "reservas" de modo equivocado, fruto, provavelmente, de inexperiência e desconhecimento técnico. Uma coisa, conforme creio ter aprendido também na semana, é o volume potencial total de óleo estimado num poço; outra coisa é o quanto desse óleo tem condições efetivas de ser extraído (as "reservas").
Além disso, na ânsia de obter alguma notícia favorável numa conjuntura adversa como a atual, acabou-se divulgando com alarde indevido, e sem a devida "desconfiança jornalística", a existência de algo que, na verdade, inexistia.
Ter um pé atrás, conforme diz uma das regras básicas do jornalismo, vale também para notícia boa proveniente de instituição supostamente neutra.


O governo federal usou o episódio (que indicaria possível escorregão da ANP) para incrementar o debate sobre o papel das agências reguladoras, criadas na "era FHC" com as privatizações, desde 1995, para administrar autonomamente setores como energia elétrica (Aneel), telecomunicações (Anatel) ou saúde complementar (ANS).
O Planalto quer mudanças nessa área, e uma reunião interministerial sobre o tema, antes agendada para a semana passada, ficou para os próximos dias.
Na última quarta, a mídia divulgou pesquisa do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor sobre o desempenho de sete agências e órgãos públicos (nota média: 4,2).
Colunistas têm abordado alternativas. Houve editoriais.
Nesse aquecimento recente da polêmica, porém, os principais jornais não publicaram (até quando escrevo esta coluna, na madrugada de sábado) materiais claros e didáticos sobre o que são e como funcionam as agências, quais as idéias em debate sobre o seu destino e o que implica na prática a adoção de uma ou outra.
Eis um erro. Pois, para além dos posicionamentos de princípio, ideológicos ou filosóficos, é dever do jornal dar ao leitor (consumidor dos serviços públicos que as agências gerenciam) a chance de não assistir atônito a um confronto cuja solução tem tudo a ver, diretamente, com a sua vida e com o seu bolso.



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