São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2001

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OMBUDSMAN

11 de setembro - 1

BERNARDO AJZENBERG

Os acontecimentos de 11 de setembro representam um marco histórico extraordinário, sem paralelo. Compará-lo a outros (a queda do Muro de Berlim, por exemplo) parece ser pouco e precipitado. Impossível prever suas consequências, mas ninguém duvida que elas serão muitas e abrangentes.
"Estamos numa época em que já não se distinguia o real do virtual. Infelizmente foi preciso acontecer algo assim, que atingisse o centro, e não a periferia, para nos darmos conta de que o real existe. Agora entramos efetivamente no terceiro milênio."
A declaração, dada à Folha pelo ensaísta português Eduardo Lourenço, expressa o que está em jogo desde a última terça-feira e, com clareza, lança à imprensa, nesse novo momento, mais de um desafio. Pois não é o "real" o objeto do jornalismo?
No mundo todo, uma geração de editores, repórteres, redatores e fotógrafos foi posta à prova nos últimos dias. E o teste, a rigor, apenas começou.

Papel e poder
Primeira constatação da semana: em plena era de florescimento de novos meios, o jornalismo impresso tem, sim, um grande papel a desempenhar.
Milhões de pessoas acompanharam as cenas espetaculares pela televisão ou pelo rádio. Outro tanto o fez pela internet. Mas nenhuma dessas alternativas, atadas, por sua natureza, ao roteiro superficial e imediato dos fatos, pôde aglomerá-los e organizá-los simultaneamente de modo seletivo e aprofundado, retrospectivo e prospectivo -algo que aconteceu nos jornais.
E cabe registrar que a Folha ocupou lugar de destaque, em que pesem essa ou aquela falha.
Em especial nos EUA, por razões óbvias, a imprensa demonstrou, também, o peso político gigantesco que tem.
Basta ver o impacto na atuação de George W. Bush do editorial de quinta-feira do "New York Times", cobrando do presidente ação e liderança.
Que outro meio de comunicação teria hoje essa capacidade de influenciar em momento tão delicado e decisivo?
É inegável que, até o momento, nesses recentes episódios, os diários impressos funcionaram como "âncoras de referência geral". Feito a ser ainda mais ressaltado no caso da Folha, por se tratar de um órgão de imprensa da periferia do mundo.

"Operações de guerra"
Segunda constatação: houve uma mobilização inédita.
Na Folha, por exemplo, cerca de 200 jornalistas se organizaram, na terça, para elaborar uma edição com 37 páginas.
A agência "Reuters" acionou mais de 300 profissionais em Washington e Nova York; a "France Presse", mais de 100.
"Operações de guerra" foram montadas, a rigor, conforme suas proporções, em todos os principais jornais, aqui e lá fora, inclusive, em muitos casos, para edições extras.
Em artigo na quinta-feira no "Chicago Tribune" sob o título "Um dia de trabalho durante um dia do mais puro terror", Don Wycliff descreve o esforço da redação daquele jornal para produzir, num só dia, duas edições extraordinárias, além de preparar a do dia seguinte.
Em ocorrências como as de terça-feira, conta Wycliff, enquanto a maioria troca os escritórios pelas casas, "os jornalistas, como os policiais e os bombeiros, deixam suas casas para ir ao trabalho".
O "Washington Post" trouxe 51 páginas sobre a tragédia; o "New York Times", 33; o "Los Angeles Times", 40. O "Le Monde", diário francês contido, publicou 19; o espanhol "El País", 28 (tablóide); o "Público", de Portugal, 25 (tablóide). São alguns exemplos.

Notícia e lucro
Diante da indiferenciação gerada pela abundância de informações de agências, um dos fatores mais importantes a conferir sucesso às edições da Folha desde a quarta-feira -eis outra constatação- foram as análises e entrevistas com especialistas, num esforço evidente de reflexão. Além disso, as reportagens de seus correspondentes e os depoimentos de pessoas que vivenciaram o pânico.
Tudo isso compôs um diferencial e seria impossível sem um olhar próprio.
A esse respeito, e já que se fala de EUA, vale lembrar declaração feita em 1992 pelo "publisher" do "New York Times", Arthur Ochs Sulzberger Jr., segundo a qual, apesar da recessão que reduzia a receita dos jornais com publicidade, o jornal não iria cortar despesas com a cobertura de notícias nacionais e internacionais.
Seu raciocínio era outro, relata Gay Talese no livro "O Reino e o Poder": "Se você tem informações de qualidade, os lucros virão". É uma lição -reiterada nesta semana- para quem olha jornais como "business" e não como órgãos de informação e de pertinência social.
Há, no entanto, um aspecto do qual a imprensa padeceu desde o dia 11: a ausência de imagens cruas. Por exemplo, do drama dos feridos nos hospitais ou de como está sendo organizada a disposição dos corpos para reconhecimento.
Com efeito, depois do espetáculo grandioso das explosões e do desmoronamento das torres gêmeas, o que se viu foram escombros, ação dos bombeiros, gente a chorar, o presidente dos EUA e sua equipe, bandeiras americanas se espalhando.
Como se um pacto houvesse entre governo e mídia para não exibir o mais doloroso.
A foto mais "pesada" foi a do homem que se atirava de uma das torres atingidas (o "NYT" a publicou, por exemplo, em sua página A7, em três colunas). As TVs não têm colocado no ar o som dos gritos desesperados.
Ora, teria o Holocausto se infiltrado de modo tão contundente na consciência dos homens não fossem as imagens -"pesadas"- dele difundidas? Quais serão as imagens humanas reais do terrorismo do século 21, além das dos atentados, que chegam a confundir real com virtual?
É cedo para afirmar a existência de tal acordo, ao menos quanto aos jornais impressos.
Bernd Debusmann, editor da "Reuters" que comandou a cobertura da agência a partir de Nova York, disse na sexta ao ombudsman por telefone que, se há poucas fotos das vítimas, é porque a polícia não permite o acesso. "Não há pacto nem autocensura", afirma. Portanto, enfrentam-se restrições, sim, ao trabalho dos jornalistas.
Debusmann menciona, como contraponto, a oportunidade que a "Reuters" teve, por exemplo, de fazer as fotos da morte do jovem Carlo Giuliani, em Gênova (Itália), dia 20 de julho, durante protesto contra a reunião do G-8. "Se pudéssemos, faríamos igual aqui", conclui.
Já os representantes das agências "France Presse" e "Associated Press" com quem falei seguem política diferente, de não fazer ou reproduzir fotos chocantes de mortos ou feridos.

Liberdade e altivez
A falta de imagens, tal como se dá, remete a outra questão: a liberdade de atuação e de publicação da imprensa.
Reportagem ontem na Folha mostrava que "as autoridades de Nova York impuseram controles rígidos sobre as informações à disposição da imprensa".
De fato, um subproduto da nova situação que mais se teme, em face da onda de "união nacional" e patriotismo que se formou nos últimos dias, é justamente a idéia de que, em nome do combate ao terrorismo, vale a pena abrir mão de certos direitos e conquistas.
"Estamos num novo mundo, no qual temos de rebalancear liberdade e segurança", declarou ao "Washington Post" o líder democrata Richard Gephardt.
Aí reside mais um perigo, um desafio para a imprensa -nos EUA e, por consequência, nas suas "adjacências"- a partir de 11 de setembro.
Entre alguns erros cometidos na semana, o mais grave foi considerar a exaltação dos atos terroristas por grupos de palestinos localizados como se fosse do conjunto das populações árabes.
Em seu texto de primeira página, na edição do dia 12, a formulação da Folha foi infeliz: "Em países árabes, a população saiu às ruas para comemorar".
É preciso ir devagar. Quaisquer que sejam as dimensões daquilo que virá -a "nova guerra americana"-, nada será fácil para os jornalistas. Haverá bloqueios, golpes em sua altivez, censura, patrulhamento.
O episódio 2 da "nova situação" está só no início.



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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
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