São Paulo, domingo, 18 de março de 2007

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Privado, público, estatal


Não é certo que a proposta de TV estatal sobreviva, mas tem o mérito de dar chance à discussão sobre o modelo de comunicação e imprensa que se quer

O MINISTRO DAS Comunicações, Hélio Costa (PMDB), anunciou na segunda-feira que apresentou ao presidente Lula o projeto de criação de uma Rede Nacional de Televisão Pública. A Folha não noticiou. No "Estado de S. Paulo", foi manchete -"Nova rede pública de TV custará R$ 250 milhões". Registrei a omissão da Folha na Crítica Interna por entender que, embora o assunto possa despertar pouco interesse na maioria dos leitores, ele é importante porque tem a ver com o modelo de democracia que o país está construindo.

Discussão emperrada
Segundo o "Estado", "junto com o sistema digital de TV [em implantação] e a Rede Nacional de Televisão Pública, o governo estuda o que chama de plano de democratização dos meios de comunicação, que envolve principalmente um pente fino nas concessões das emissoras de rádio e TV e vem sendo estudado por três setores do governo".
A Folha se recuperou na quarta-feira e editou uma página e meia com três títulos que resumem o enfoque do jornal: "Governo defende TV estatal para "mostrar suas idéias'", "Para deputados, proposta exige "grande debate'" e "Projeto reflete desejo de aparelhamento do Estado, diz entidade [referência à posição da Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais]". Na sexta-feira, voltou ao tema com uma entrevista com o novo ministro da Justiça, Tarso Genro, que defendeu a criação da rede com o argumento da necessidade de garantir a liberdade de "circulação de opinião". E ontem trouxe a informação de que a rede estatal pode custar mais de R$ 500 milhões.
O "Estado" fez um editorial contra a iniciativa, mas deu espaço para textos explicativos sobre um tema que é complexo e para o confronto de opiniões. A Folha não havia manifestado sua opinião até anteontem e não havia previsão de fazê-lo neste fim de semana, embora seja certo que também criticará o projeto.
Parece claro que o governo confunde de propósito rede pública (a serviço da sociedade e independente dos governos de turno, como a BBC inglesa) com comunicação estatal (ou chapa branca). Não tenho simpatia pela proposta do ministro e acho difícil que sobreviva, mas ela tem o mérito de dar uma nova oportunidade para a discussão sobre o modelo de comunicação que se quer para o país.
É uma discussão emperrada, com mais opinião que informação, restrita hoje a setores das universidades, associações de classe e observatórios da imprensa e que encontra pouca acolhida nos meios de comunicação.

Temas espinhosos
Por essa razão, considero importante o estudo "Mídia e Políticas Públicas de Comunicação" que a Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) acaba de lançar (www.andi.org.br/-pdfs/midia-ppc.pdf). A Andi, hoje uma das mais importantes instituições de observação do comportamento dos jornais no Brasil, analisou como a imprensa cobre a própria imprensa, e o resultado não é dos melhores.
Foram estudados 1.184 textos publicados em 53 diários de todos os Estados brasileiros e em quatro revistas semanais entre 2003 e 2005. Não inclui 2006, quando o comportamento da imprensa durante as eleições foi mais discutido que os programas dos candidatos.
O estudo questiona: "Será que a imprensa brasileira, enquanto uma das guardiãs da democracia, vem conseguindo abordar de forma objetiva questões relacionadas aos seus próprios deveres e responsabilidades? De que maneira e em que medida as empresas do setor priorizam informar seus públicos sobre os temas que dizem respeito ao universo das comunicações?"
Conclusões da Andi: "Os dados (...) denotam que a mídia brasileira costuma falar de si mesma de uma maneira seletiva, deixando de lado temas espinhosos, porém de central relevância para o desenvolvimento das democracias contemporâneas. (...) A mostra (...) permite identificar que a cobertura global dos mais diferentes temas associados às comunicações está muito aquém da relevância da instituição mídia para os regimes democráticos".
A cobertura é irregular e está concentrada. Apenas 7 dos 57 veículos analisados são responsáveis por 35% dos textos publicados. Entre os sete, três se destacam: "Carta Capital" (11,1% dos textos sobre os meios saíram na revista), "O Estado de S. Paulo" (7,8%) e Folha (6,8%). O "Estado" publicou no período uma média de 30 artigos por mês, enquanto a Folha publicou 26. Os jornais do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste, onde uma boa parte está em mãos de grupos políticos, praticamente ignoraram as discussões sobre a imprensa.
E quando jornais e revistas resolvem tratar do assunto, falam principalmente da televisão (59% dos textos analisados, e aí não estão incluídas reportagens de fofocas nem as grades de programação), enquanto a imprensa escrita é pauta para apenas 18,6% dos textos, tanto quanto as rádios.
As discussões sobre o papel dos meios, sobre imprensa e democracia, concentração da propriedade nas mãos de poucas empresas, concentração de audiência e publicidade em poucos veículos e grupos, regulação e auto-regulação e outros assuntos espinhosos (para a imprensa) quase não têm espaço.
Outra conclusão do estudo: não existe sociedade civil na discussão. As reportagens têm dois atores principais: as empresas jornalísticas e o governo. O que explica a extrema polarização que domina os debates. As fontes ouvidas pelas reportagens confirmam a escassa participação da sociedade, mas ainda assim indicam um equilíbrio maior que em outras pesquisas semelhantes: 18% eram do Executivo, 15% de empresas e associações empresariais, 12% de universidades e centros de estudo, 11% do Legislativo e Judiciário e 5% de representantes de ONGs, sindicatos de trabalhadores e movimentos sociais.
Houve uma cobertura, no entanto, em que o equilíbrio desapareceu completamente. Na discussão sobre o Conselho Federal de Jornalismo, em 2004, 64% dos textos só trouxeram posições contrárias ao projeto do governo e da Federação Nacional de Jornalistas e apenas 4,5% ofereceram no mesmo texto opiniões a favor e contra. Naquela cobertura, 15% dos textos tinham como fonte as empresas jornalísticas e suas associações, enquanto 2,2% deram espaço para informações dos sindicatos e federação dos jornalistas.

Debate necessário
Chega de estatísticas. O ponto é que, na minha opinião, as empresas jornalísticas erram ao represar uma discussão que cresce a cada dia e será incontrolável. Ao não atentarem para a importância do debate que as envolvem perdem confiança e credibilidade. O melhor a fazer é enfrentar a discussão e os questionamentos com profissionalismo e honestidade, informando, expondo claramente as suas posições sobre cada um dos temas e abrindo igual espaço para as dezenas de outras posições que convivem na sociedade e estão insatisfeitas com o modelo atual. Enquanto a discussão não for ampla, ficará sempre polarizada entre empresas e governos, e sempre tenderá à irracionalidade. A garantia do espaço para a discussão é uma das responsabilidades do jornalismo.


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