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Privado, público, estatal
Não é certo que a proposta de TV estatal sobreviva, mas tem o mérito de dar chance à discussão sobre
o modelo de comunicação e imprensa que se quer
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O MINISTRO DAS Comunicações, Hélio Costa
(PMDB), anunciou na
segunda-feira que apresentou
ao presidente Lula o projeto
de criação de uma Rede Nacional de Televisão Pública. A Folha não noticiou. No "Estado
de S. Paulo", foi manchete
-"Nova rede pública de TV
custará R$ 250 milhões". Registrei a omissão da Folha na
Crítica Interna por entender
que, embora o assunto possa
despertar pouco interesse na
maioria dos leitores, ele é importante porque tem a ver
com o modelo de democracia
que o país está construindo.
Discussão emperrada
Segundo o "Estado", "junto
com o sistema digital de TV
[em implantação] e a Rede Nacional de Televisão Pública, o
governo estuda o que chama
de plano de democratização
dos meios de comunicação,
que envolve principalmente
um pente fino nas concessões
das emissoras de rádio e TV e
vem sendo estudado por três
setores do governo".
A Folha se recuperou na
quarta-feira e editou uma página e meia com três títulos
que resumem o enfoque do
jornal: "Governo defende TV
estatal para "mostrar suas
idéias'", "Para deputados, proposta exige "grande debate'" e
"Projeto reflete desejo de aparelhamento do Estado, diz entidade [referência à posição da
Associação Brasileira das
Emissoras Públicas, Educativas e Culturais]". Na sexta-feira, voltou ao tema com uma
entrevista com o novo ministro da Justiça, Tarso Genro,
que defendeu a criação da rede com o argumento da necessidade de garantir a liberdade
de "circulação de opinião". E
ontem trouxe a informação de
que a rede estatal pode custar
mais de R$ 500 milhões.
O "Estado" fez um editorial
contra a iniciativa, mas deu
espaço para textos explicativos sobre um tema que é complexo e para o confronto de
opiniões. A Folha não havia
manifestado sua opinião até
anteontem e não havia previsão de fazê-lo neste fim de semana, embora seja certo que
também criticará o projeto.
Parece claro que o governo
confunde de propósito rede
pública (a serviço da sociedade e independente dos governos de turno, como a BBC inglesa) com comunicação estatal (ou chapa branca). Não tenho simpatia pela proposta do
ministro e acho difícil que sobreviva, mas ela tem o mérito
de dar uma nova oportunidade para a discussão sobre o
modelo de comunicação que
se quer para o país.
É uma discussão emperrada, com mais opinião que informação, restrita hoje a setores das universidades, associações de classe e observatórios
da imprensa e que encontra
pouca acolhida nos meios de
comunicação.
Temas espinhosos
Por essa razão, considero
importante o estudo "Mídia e
Políticas Públicas de Comunicação" que a Andi (Agência
de Notícias dos Direitos da
Infância) acaba de lançar
(www.andi.org.br/-pdfs/midia-ppc.pdf). A Andi,
hoje uma das mais importantes instituições de observação do comportamento dos
jornais no Brasil, analisou como a imprensa cobre a própria imprensa, e o resultado
não é dos melhores.
Foram estudados 1.184
textos publicados em 53 diários de todos os Estados brasileiros e em quatro revistas
semanais entre 2003 e 2005.
Não inclui 2006, quando o
comportamento da imprensa
durante as eleições foi mais
discutido que os programas
dos candidatos.
O estudo questiona: "Será
que a imprensa brasileira, enquanto uma das guardiãs da
democracia, vem conseguindo
abordar de forma objetiva
questões relacionadas aos
seus próprios deveres e responsabilidades? De que maneira e em que medida as empresas do setor priorizam informar seus públicos sobre os
temas que dizem respeito ao
universo das comunicações?"
Conclusões da Andi: "Os dados (...) denotam que a mídia
brasileira costuma falar de si
mesma de uma maneira seletiva, deixando de lado temas
espinhosos, porém de central
relevância para o desenvolvimento das democracias contemporâneas. (...) A mostra
(...) permite identificar que a
cobertura global dos mais diferentes temas associados às
comunicações está muito
aquém da relevância da instituição mídia para os regimes
democráticos".
A cobertura é irregular e está concentrada. Apenas 7 dos
57 veículos analisados são responsáveis por 35% dos textos
publicados. Entre os sete, três
se destacam: "Carta Capital"
(11,1% dos textos sobre os
meios saíram na revista), "O
Estado de S. Paulo" (7,8%) e
Folha (6,8%). O "Estado" publicou no período uma média
de 30 artigos por mês, enquanto a Folha publicou 26. Os jornais do Norte, do Nordeste e
do Centro-Oeste, onde uma
boa parte está em mãos de
grupos políticos, praticamente ignoraram as discussões sobre a imprensa.
E quando jornais e revistas
resolvem tratar do assunto,
falam principalmente da televisão (59% dos textos analisados, e aí não estão incluídas
reportagens de fofocas nem as
grades de programação), enquanto a imprensa escrita é
pauta para apenas 18,6% dos
textos, tanto quanto as rádios.
As discussões sobre o papel
dos meios, sobre imprensa e
democracia, concentração da
propriedade nas mãos de poucas empresas, concentração
de audiência e publicidade em
poucos veículos e grupos, regulação e auto-regulação e outros assuntos espinhosos (para a imprensa) quase não têm
espaço.
Outra conclusão do estudo:
não existe sociedade civil na
discussão. As reportagens têm
dois atores principais: as empresas jornalísticas e o governo. O que explica a extrema
polarização que domina os debates. As fontes ouvidas pelas
reportagens confirmam a escassa participação da sociedade, mas ainda assim indicam
um equilíbrio maior que em
outras pesquisas semelhantes:
18% eram do Executivo, 15%
de empresas e associações
empresariais, 12% de universidades e centros de estudo,
11% do Legislativo e Judiciário
e 5% de representantes de
ONGs, sindicatos de trabalhadores e movimentos sociais.
Houve uma cobertura, no
entanto, em que o equilíbrio
desapareceu completamente.
Na discussão sobre o Conselho Federal de Jornalismo, em
2004, 64% dos textos só trouxeram posições contrárias ao
projeto do governo e da Federação Nacional de Jornalistas
e apenas 4,5% ofereceram no
mesmo texto opiniões a favor
e contra. Naquela cobertura,
15% dos textos tinham como
fonte as empresas jornalísticas e suas associações, enquanto 2,2% deram espaço
para informações dos sindicatos e federação dos jornalistas.
Debate necessário
Chega de estatísticas. O
ponto é que, na minha opinião,
as empresas jornalísticas erram ao represar uma discussão que cresce a cada dia e será
incontrolável. Ao não atentarem para a importância do debate que as envolvem perdem
confiança e credibilidade. O
melhor a fazer é enfrentar a
discussão e os questionamentos com profissionalismo e honestidade, informando, expondo claramente as suas posições sobre cada um dos temas e abrindo igual espaço para as dezenas de outras posições que convivem na sociedade e estão insatisfeitas com o
modelo atual. Enquanto a discussão não for ampla, ficará
sempre polarizada entre empresas e governos, e sempre
tenderá à irracionalidade. A
garantia do espaço para a discussão é uma das responsabilidades do jornalismo.
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