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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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OMBUDSMAN

A triste saga de Jayson Blair

BERNARDO AJZENBERG

A Folha deu pouca bola para o assunto na semana, mas o fato é que, desde domingo, o jornalismo, em especial o norte-americano, levou um brutal soco no estômago.
Ele foi produzido por uma extensa reportagem do "New York Times" daquele dia sobre erros, fraudes, plágios e invenções contidas em textos produzidos ao longo de cinco meses por um de seus repórteres, Jayson Blair, 27, que deixou o jornal dia 1º.
O levantamento, feito por repórteres, editores e pesquisadores do próprio "Times", ocorreu a partir da constatação de que um texto de Blair publicado em 26/4 sobre a família de um soldado desaparecido no Iraque plagiava reportagem de oito dias antes do "San Antonio Express-News", do Texas.
Constataram-se ao menos 36 fraudes nas 73 reportagens dele publicadas entre outubro de 2002 e abril último, detalhadas nas quatro páginas que o "Times" usou para o caso domingo.
Blair fingia mandar matérias de lugares onde não estava, usava fotos para forjar detalhes que não presenciara, inventava declarações. Cerca de 600 reportagens de sua autoria publicadas desde 1998 estão sendo checadas.

Crise
O "New York Times", com 152 anos de existência, é considerado o jornal mais influente dos EUA e um dos mais importantes do mundo. Faz parte das instituições que estruturam a democracia naquele país. Publica diariamente uma seção de "Correções", goza uma tradição de independência e credibilidade.
O próprio fato de ter divulgado o caso com estardalhaço, em evidente tom de mea-culpa, conta, nesse sentido, a seu favor.
História e transparência, porém, não respondem à questão principal: como foram possíveis tantas fraudes durante tanto tempo num jornal como esse?
Na quarta-feira, cerca de 500 de seus jornalistas se reuniram por duas horas, com a direção, numa sala de cinema de Nova York para discutir o problema.
Embora o encontro tenha sido a portas fechadas, relatos da própria mídia norte-americana dão conta de que o clima, ali, foi de tensão e crise declarada, com abertos questionamentos em relação aos mecanismos de controle do jornal, critérios de recrutamento e promoção, subestimação da comunicação interna.
Questiona-se, inclusive, se não houve excessiva tolerância da cúpula com Blair -sobre quem circulavam advertências quanto a imprecisões e comportamento duvidoso já no início de 2002- devido ao fato de ele ser negro e de o jornal adotar uma política de recrutamento que valoriza a chamada "ação afirmativa".
Desde outubro, por exemplo, o jornalista enviara textos supostamente de 20 cidades em seis Estados sem ter submetido à administração um único recibo para prestação de contas.
Em programa na CNN, o colunista de mídia do "Washington Post", Howard Kurtz, chegou a pôr em dúvida o próprio procedimento do "Times" para apurar os erros de Blair.
"Acho que esse é um exemplo clássico em que o jornal poderia usar um ombudsman com visão independente, pois, no fim das contas, os editores que, em última instância, estão envolvidos no caso são os mesmos que supervisionam essa investigação", disse o jornalista.
Alguém fora da estrutura de poder do jornal, argumenta Kurtz, poderia, por exemplo, questionar Howell Raines (editor-executivo) sobre o fato de ele próprio ter congratulado Blair num e-mail sobre sua cobertura no caso do atirador de Washington ano passado.

Momento delicado
Casos assim já ocorreram nos EUA, mas não num veículo tão portentoso, por tanto tempo, com tamanha dimensão -tampouco num momento tão delicado, em que, além de sofrer forte crise econômica, a mídia é questionada por sua quase generalizada subserviência ao "patriotismo" de George W. Bush.
A Folha, porém, deu ao assunto, segunda-feira, apenas uma notinha em pé de página, diferentemente de concorrentes, que tiveram mais sensibilidade para captar a sua dimensão histórica.
Na terça, recuperou-se um pouco ao noticiar, com foto de Blair, que o jornal "The Boston Globe", no qual ele também trabalhara por alguns meses, deflagara a sua própria investigação.
Houve um editorial na edição de quarta e só -ao menos até o fechamento desta coluna.
Aliás, a ombudsman do "Globe", Christine Chinlund, com quem troquei e-mails, lamenta o ocorrido de modo simples:
"A saga de Jayson Blair é, acima de tudo, uma saga muito triste. Ela se institui como uma lembrança a todos os jornalistas e editores sobre a necessidade de uma vigilância extrema quanto à exatidão. Não podemos, jamais, abrir mão disso".
O "Times", o "Globe" e outros jornais dos EUA anunciaram uma revisão de procedimentos internos de checagem e controle.
No Brasil, revelaram-se até o momento poucos casos de fraude ou plágio. A "triste saga" de Jayson Blair deve servir, no mínimo, como um enorme sinal amarelo.

PS: Tendo direito de republicar textos do "Times", a Folha o fez 170 vezes desde outubro passado. Nenhum era de Blair. Já em períodos anteriores, pelo menos um dos textos ("Revistas on line criam versões impressas para sobreviver", em 11 de março de 2001) trazia a assinatura do repórter.


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