São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

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OMBUDSMAN

Clamor e justiça

BERNARDO AJZENBERG

O julgamento dos assassinos do pataxó Galdino Jesus dos Santos, entre os dias 6 e 10, foi daquelas ocasiões especiais em que a imprensa mostra a cara.
Desde o assassinato, em 20 de abril de 1997, quando cinco jovens de classe média queimaram o índio que dormia num ponto de ônibus, o "clamor público" esteve, compreensivelmente, aliado à vítima e favorável à punição máxima para os réus.
Mas como se construiu o noticiário sobre o assunto (independentemente da opinião expressa em editoriais)?
Com diferenças relevantes entre um veículo e outro, o fato é que ele não correspondeu, no geral, ao modelo mais desejável: aquele que, apesar do drama, busca equilíbrio e frieza para não transformar reportagem em peça de campanha.
Para ficar nos chamados principais diários nacionais, pode-se dizer que, neste caso, os do Rio, em especial o "Jornal do Brasil", vestiram a camisa da acusação.
Ao reportar o primeiro dia do julgamento, por exemplo, na edição do dia 7, o "JB" trouxe um texto engajado e irônico, no qual procurava demonstrar como os réus, ao depor, tinham "decorado aplicadamente a linha de defesa desenhada por seus advogados".
No domingo (dia 11), o jornal trazia como título em primeira página: "Assassinos de pataxó só ficam presos até 2004 (grifo meu)". Uma inequívoca opção.
Registre-se, à parte, que, na mesma linha, o diário francês "Le Monde" não ficou para trás. Sua reportagem de capa no dia 14, com texto exultante, se intitulava "Justiça brasileira pune os carrascos de um índio queimado vivo por "diversão'".
Menos exaltados, o "Globo" e o "Estado de S. Paulo" nem por isso deixaram de manifestar, principalmente no início, inclinações pelo "clamor público".
Mas a Folha também ameaçou resvalar na onda, embora não tenha sido essa, felizmente, a marca predominante em sua cobertura.

Escola Base
Em crítica interna sobre a edição do dia 6, que apresentava o julgamento, observei o seguinte:
"O caso Escola Base trouxe inúmeras lições para o jornalismo. Algumas poderiam ser rememoradas na cobertura do caso pataxó agora. Mesmo em proporções e circunstâncias processuais diferentes, há de se tomar mais cuidado no tratamento dado aos acusados no julgamento do caso do índio Galdino. Há que se ouvir mais os argumentos da defesa (que prega morte após lesão e não homicídio doloso) e reproduzi-los para conhecimento do leitor, assim como de familiares dos réus. Caso contrário, como ocorre hoje ("Acusação pede a juíza que deixe o caso pataxó"), o noticiário estará tendencioso".
No dia seguinte, o colunista Luís Nassif, do Conselho editorial, publicou texto sob o título "A volta do linchamento", no qual afirmava que "a cobertura do julgamento dos rapazes que assassinaram o índio pataxó é vergonhosa e mostra descaso da imprensa com direitos individuais mínimos".
Nassif fazia uma generalização da qual discordo, mas, de todo modo, tocava num ponto essencial: à imprensa, não cabe julgar, mas reportar os fatos, dar condições ao leitor de, ele sim, se achar conveniente, tomar partido.
Mais do que isso, cabe à imprensa, buscando equilíbrio, evitar o papel de executor de reputações -lição tirada, de modo dolorido, do célebre caso da Escola Base (1994), cujos donos foram massacrados injustamente sob a acusação de abuso sexual de crianças.
Isso significava, no caso pataxó, defender os rapazes assassinos? Óbvio que não, até porque -e aqui acaba a analogia com a Escola Base- houve, sim, um crime abominável, escabroso.
Significava, apenas, propugnar por um jornalismo sólido, em que, tal como na Justiça, haja fatos, defesa, acusação, cabendo aos jurados -não aos jornalistas- a orientação da sentença.
A princípio, pode soar antipático, repulsivo até. Mas é de liberdade de imprensa, de direitos individuais e de democracia que se está falando.



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