São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2000


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OMBUDSMAN

Indigência informativa

RENATA LO PRETE

"Quando você voltar de férias, encontrará esta humilde mensagem de solidariedade. Pois já perdi a conta das vezes em que você criticou reportagens portadoras de uma nova "teoria" sobre aspectos de nossa vida cotidiana, construída sem qualquer dado concreto ou com dados muito discutíveis. Seu esforço, pelo visto, é vão."
"Hoje a Folha repete a fórmula, anunciando em chamada de capa que a "mendicância vira profissão em São Paulo", porque os pedintes têm pontos fixos, usam ajudantes etc. Que coisa inédita, não?" A mensagem da leitora foi enviada no domingo passado, véspera de meu retorno ao trabalho.
Voltar a ler o jornal de maneira sistemática depois de algumas semanas de descanso é uma experiência interessante. Nesse momento, ele parece mais necessário do que em circunstâncias habituais, um instrumento de orientação para reentrar na atmosfera.
Ao mesmo tempo, o olhar fresco e o relativo desconhecimento dos temas em pauta permitem perceber com mais clareza que falta costura na apresentação das notícias.
Não se pede que o jornal faça tratados, nem que funcione como revista. Mas é razoável esperar que indique ao leitor a essência e o sentido da discussão em curso, seja ela sobre o "neonacionalismo" ou sobre a encrenca com os perueiros em São Paulo. Não é regra encontrar essa orientação nas páginas.
O distanciamento temporário também reforça a percepção de que sobram histórias como a apontada pela leitora.
"A velha imagem do pedinte errante que peregrinava pela cidade em busca de trocados ou de um prato de comida na porta das casas acabou", dizia a reportagem. "A disputa pela esmola levou os mendigos à "profissionalização'".
"A esmola 24 horas", prosseguia o texto, "deu origem à indústria da miséria -um ramo lucrativo que envolve a exploração de mão-de-obra infantil, mentiras e até confrontos para manter o controle dos pontos de exploração".
Aí vinham os casos. O da secretária que "trocou o emprego por esmola", porque naquele ganhava R$ 150 mensais, metade consumida em condução, e com esta faz até R$ 35 por dia.
O do homem que pede dinheiro no metrô afirmando ser portador do HIV. "Em apenas um vagão" ele arrecadou "quase R$ 30, segundo contagem da reportagem da Folha".
De acordo com o jornal, o remédio que o pedinte alega ser muito caro e estar sumido das prateleiras "não está em falta e é distribuído gratuitamente".
Depois, a opinião de um estudioso. Para o "antropologista" entrevistado, "a mendicância virou um cálculo racional, onde os pedintes estão sempre à procura de novos nichos, seguindo a lógica dos empresários: buscar maior rentabilidade".
Para terminar, uma palavra oficial. O secretário nacional de Direitos Humanos dizia que o governo federal "poderá apoiar" a implantação do toque de recolher para retirar das ruas das principais capitais do país os menores que pedem esmolas à noite.
Como a leitora, já no domingo eu havia me impressionado com a ausência de novidade naquelas três páginas, principal destaque do caderno Cotidiano/São Paulo.
Quem não sabe que pedintes têm pontos fixos, que os donos dos pontos exploram crianças, que a disputa por território é das mais ferozes e que é difícil separar fato de ficção nas histórias contadas por quem pede esmolas? Aparentemente, só alguns jornalistas da Folha.
Tão ruim ou pior do que a ausência de novidade é o desvio de foco promovido pela reportagem, pontuada por expressões pseudo-engraçadinhas como "miséria S.A." e "mendigo 24 horas".
Em três páginas, o máximo que se fez para situar a mendicância no quadro social brasileiro foi introduzir um parágrafo periférico sobre o índice de desemprego em São Paulo.
Alguma coisa está errada quando a Folha concentra esforços em "desmascarar" um pedinte de metrô e contar seus trocados. Indigente, no caso, é a informação.
É possível que seja vão o esforço para combater esse método de fabricar reportagens, tão disseminado ele está no jornal. Mas a carta da leitora deveria servir de alerta à Redação. A fórmula já não engana ninguém. Insistir nela é condenar-se à irrelevância.

"Na segunda-feira, a Folha noticiou a morte de Charles Schulz, criador dos Peanuts, abaixo da dobra na Primeira Página", protestou um leitor.
Ele comparou o tratamento ao do jornal francês "Libération", que nesse dia trouxe a morte do desenhista norte-americano, vítima de câncer aos 77 anos, como principal destaque.
Mesmo considerando as diferenças entre as duas publicações, e comparando apenas os principais diários brasileiros, o registro na capa da Folha foi o mais apagado.
De volta ao leitor: "Por que a principal manchete é geralmente relativa ao governo ou, com maior frequência ainda, uma questão de economia? A economia passa, o governo passa -e, por sinal, quase tudo o que vem de um ou de outro é mentira ou de má qualidade. A cultura fica. Snoopy ainda vai enterrar todas essas agências de pseudocontrole dos serviços públicos privatizados."



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Renata Lo Prete é a ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
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