São Paulo, domingo, 22 de abril de 2001

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OMBUDSMAN

Marcos e lacunas

BERNARDO AJZENBERG

A crise instaurada na última semana no Senado é uma das mais graves que a história política do país já conheceu. Está longe de terminar, e pode produzir respingos de dimensões ainda imprecisas em endereços diversos de Brasília e no próprio Palácio do Planalto.
Quando escrevia esta coluna (por volta das 17h de sexta-feira, dia 20, por motivo explicado em texto abaixo), eram imprevisíveis os desdobramentos da tensão gerada a partir dos depoimentos de Regina Célia Peres Borges, ex-diretora do Prodasen, a respeito da violação do painel eletrônico do Senado, seus executores e prováveis mandantes.
Já se torna possível e necessário, porém, um retrospecto da cobertura dada pela imprensa ao caso até agora. E, em primeira visada, quatro foram os seus momentos decisivos.
O pontapé inicial se deu em 22 de fevereiro, quando o site da revista "Isto É" trouxe pela primeira vez -embora com imperfeições- a revelação do conteúdo da conversa entre o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) e procuradores da República no dia 19 daquele mês. A base da reportagem eram fitas gravadas do encontro.
A versão impressa da revista (datada de 28 de fevereiro) reproduzia o noticiário e dava mais detalhes. Um dos itens principais da conversa, conforme informou a publicação, foi a afirmação de ACM aos seus interlocutores de que conhecia a lista da votação da cassação do então senador Luiz Estevão de 28 de junho de 2000.
No dia 3 de março, a Folha entrou com peso no assunto e trouxe a seguinte manchete: "Senado quebrou sigilo de votação". A reportagem informava que um funcionário do Prodasen entregara a ACM uma listagem com os nomes de quem votou contra e de quem votou a favor da interrupção do mandato de Luiz Estevão.
Acrescentava que a existência da relação havia sido revelada ao jornal por duas pessoas, "sob a condição de que suas identidades fossem preservadas".
Depois dessas duas reportagens e das respectivas repercussões, vieram a morte de Mário Covas, o naufrágio da plataforma P-36 da Petrobrás, a crise argentina.
Mais do que tudo isso, quase como escândalo-espelho no embate Jader Barbalho-ACM, aflorou de vez o também histórico rombo de quase R$ 2 bilhões (até o momento) na Sudam.
O caso do painel eletrônico ficou praticamente adormecido, à espera das conclusões dos técnicos da Unicamp a respeito das possibilidades efetivas de violação do sistema de computadores.
O terceiro momento importante, na cobertura do "Caso Painel", foi propiciado também pela "Isto É". Na edição de 11 de abril, em texto intitulado "Abraço de afogado", a revista registrava: "ACM tem dito a parlamentares e a assessores que foi o líder do governo, José Roberto Arruda (PSDB-DF), quem lhe entregou a lista com os nomes de todos os que votaram a favor e contra Estevão".
Adiantava, também, que Regina Célia -até então um personagem relativamente obscuro- havia sido nomeada diretora do Prodasen por ACM a partir de indicação de Arruda e do governador da Bahia, César Borges (afilhado político de ACM).
Finalmente, uma vez trazida por todos os jornais na última quarta-feira a notícia do primeiro depoimento da funcionária a uma comissão de inquérito no Senado (depoimento este realizado na segunda-feira, dia 16), veio o quarto destaque de peso na cobertura do caso. Foi a entrevista exclusiva com Regina Célia publicada pelo "Jornal do Brasil" na quinta-feira.
Ali, não só se confirmava a acusação de que o pedido de violação do painel partira do senador Arruda e de ACM, como também se adiantavam inúmeros detalhes daquilo que aconteceu na véspera da votação cujo sigilo foi destroçado e que ela mesma, Regina Célia, repetiria, mais tarde, no mesmo dia, em novo depoimento no Senado.
Aí estão, até o momento, os marcos da cobertura jornalística desse histórico caso. Dadas as suas dimensões e as lacunas ainda existentes, é certo que outros precisarão ser estabelecidos.

Perfil adjetivado
Vale comentar, aliás, dois aspectos referentes ao que ainda está por vir. Quem pôde ver pela TV o depoimento de Regina Célia na última quinta-feira à Comissão de Ética do Senado dificilmente deixou de acreditar em suas palavras ou de apreciar sua coragem, honradez e dignidade.
Isso não pode justificar, no entanto, o perfil quase santificante que os jornais passaram a lhe atribuir. Nesta sexta-feira, por exemplo, a Folha publicou um texto intitulado "Ex-diretora do Prodasen é filiada ao PSDB".
Em vez de mostrar informações novas e aprofundadas sobre a vida de Regina Célia em diversos aspectos, a reportagem ocupa três quartos de seu espaço com depoimentos e adjetivos engrandecedores: séria e competente, respeitada, correta, afável, profissional, dedicada, sensível, "nunca foi leviana nem irresponsável", prestativa, benquista, trabalhadora.
Pode ser que a ex-diretora do Prodasen reúna essas qualidades todas -acredito mesmo que assim seja. Mas os marcos da cobertura do caso destacados aqui testemunham que jornalismo de verdade não é feito de declarações e sim de investigação. É fruto de ousadia e perseverança, cultivo de fontes confiáveis e criatividade. Até mesmo entrevistas, como a publicada pelo "JB", decorrem de batalha; não caem do céu.
Para ficar apenas nesse exemplo: será que tudo a respeito de Regina Célia, inclusive em aspectos positivos de seu currículo, já foi estabelecido?
Por falar em ousadia. A manchete da Folha desta mesma sexta-feira foi, como disse um colega, "extremamente tucana". Veja só:
"O Estado de S.Paulo": "Depoimento abre caminho para cassar ACM e Arruda";
"O Globo": "Depoimento de ex-diretora abre caminho para cassar ACM e Arruda";
"Jornal do Brasil": "Congresso já admite cassação dos senadores ACM e Arruda".
A Folha deu: "Depoimento complica Arruda e ACM".
Ora, os dois senadores já estão "complicados" faz muito tempo, para dizer o mínimo.


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