São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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OMBUDSMAN

Recuo na Educação

BERNARDO AJZENBERG




Quebrando tradição de muitos anos, a Folha relegou a segundo plano, em 2002, o acompanhamento jornalístico da situação da Educação no país. Em alguns momentos, deixou de publicar fatos importantes. Em outros, abandonou o criticismo, princípio caro ao jornalismo que defende.
O modo como se noticiaram os resultados do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), dia 13, e o Censo do Ensino Superior, quinta passada, foi expressivo.
Os textos das reportagens possuíam visível tonalidade oficialesca. Nenhuma análise crítica foi acoplada a eles. Declarações? Só do Ministério da Educação.
No caso do Enem, o ministro Paulo Renato, por exemplo, atribuía a culpa pelo pior resultado desde 98 ao "aumento da participação de alunos cujos pais têm baixa escolaridade, fator que prejudica o acompanhamento e o desempenho escolar".
A reportagem foi incapaz de produzir, ali ou depois, algum contraponto a essa avaliação, no mínimo, polêmica.
A Folha publicou um curto editorial sobre o tema, mas foi preciso um texto de alguém de fora (Miguel Jorge, em "A nota baixa do ensino médio", página A3, dia 20) para que surgisse algo mais crítico e aprofundado.
Até sexta, a situação era a mesma no caso do Censo. Nenhum contrapeso às comemorativas considerações oficiais foi exposto, por exemplo, quanto ao fato de ter subido 96%, de 95 a 2001, o total de alunos em universidades ou faculdades privadas à noite. Isso é mesmo bom? Qual é a qualidade desses cursos?
No primeiro semestre, a USP enfrentou meses de greve em algumas faculdades. O jornal só "entrou" no assunto em junho. Mesmo assim, com evidente fragilidade, por exemplo, na reprodução de como se organizava o movimento. Sem falar na demora para apresentar uma radiografia da situação penosa da principal universidade do país.

Exceção e regra
Houve exceções: a cobertura do provão (que avalia os cursos superiores), em junho, incluía críticas de associações de reitores e de universidades particulares; e um balanço da "era FHC", em 21/10, mostrava como o governo, ao privilegiar o ensino fundamental, deixou se acumularem problemas nos outros níveis.
Como sempre, porém, elas confirmam a regra: é incompreensível que o jornal, sabedor das críticas e dos problemas do setor, não os tenha incorporado com regularidade no tratamento dedicado a ele.
O editor-adjunto de Cotidiano, Daniel Bramatti, concorda "em parte" com essa avaliação: "A Folha não fez da cobertura de Educação uma prioridade em 2002 -e nisso não foi diferente dos demais grandes jornais".
Ressaltando as cerca de 30 edições do Fovest publicadas desde março, ele faz uma ressalva: "No caso dos vestibulares, o desempenho foi bom e superior ao dos concorrentes".
Sobre vestibular, de fato, penso que o problema maior foi outro.

Fuvest
Observe os títulos no quadro acima. Eles encabeçam as reportagens da Folha no dia seguinte às provas da Fuvest nos últimos três anos. O mote de todos é a porcentagem de estudantes que, apesar de inscritos, não fizeram o exame.
Mas não é só o teor dos títulos que se repete. Com variações mínimas, o esquema é o mesmo também nos textos.
O de 2000 começa dizendo qual foi a abstenção (3,37%), registra depois o grau de dificuldade das provas e, à parte, conta o caso de alunos que perderam o exame por causa de atraso. Em 2001, a ordem foi abstenção (3,55%), casos de atraso, grau de dificuldade. Em 2002: abstenção (3,77%), dificuldade, atraso.
Será que essa mesmice reflete a realidade de cada momento? Ou ela provém, no fundo, de um esquema pré-fabricado de cobertura que prescinde das "ruas"?
O caso do domingo passado responde com nitidez.
Pela primeira vez, todas as provas foram reunidas num único dia, caindo de 160 para 100 o número de questões; o tempo de permanência na sala subiu para cinco horas seguidas, havendo, em média, três minutos para a resolução de cada teste.
Naturalmente, seria ainda maior e aguda a tensão dos estudantes (os mesmos que, lembre-se, foram mal no Enem); mais do que em outros anos, pesariam especialmente, na capacidade de preservação da concentração e do raciocínio, as condições materiais das salas (ventilação, estado das carteiras, espaço etc).
Em tais circunstâncias, não tendia a se acentuar, por exemplo, a desigualdade de condições, já grave, entre alunos da periferia e os de bairros "nobres" para enfrentar o exame?
Não se trata, aqui, apenas, do oferecimento de um serviço de orientação vocacional e pedagógica (como faz o Fovest), mas de algo mais abrangente, de política pública. Assunto, sem exagero, de Estado.
Quais dessas novidades foram exploradas na reportagem de segunda? Nenhuma.
Na terça, quando mais de 150 mil estudantes tentavam avaliar seu desempenho e suas chances (as "notas de corte"), o jornal não trouxe nada sobre Fuvest.
Na quarta, tendo a concorrência tocado no tema no dia anterior, publicou-se pequena orientação para calcular a provável nota de corte em cada curso.
Enquanto o "Mural" da Folha Online acolhia desde o início queixas sobre o excesso de calor nas salas, só na quinta-feira, no Fovest, a Folha tocou nisso.
Prevaleceram o acomodamento ao molde anterior, a falta de aderência ao mundo real.
Esse problema é de natureza diversa do apontado acima, sobre o conjunto do noticiário de Educação. Ambos, porém, refletem um jornalismo acomodado, não-singular, que subestima a reflexão própria e a de especialistas na área. Um jornalismo que comprime a disposição crítica e o refinamento analítico ao invés de estimulá-los.


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