São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

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OMBUDSMAN

Viagens perigosas

BERNARDO AJZENBERG

Como um raio em céu azul, caiu no jornal domingo passado reportagem sobre o projeto Calha Norte. Para quem não se lembra, é um programa criado em 1985 para povoar as fronteiras do Brasil na Amazônia. Título do texto: "Quintão quer elevar verba do Calha Norte".
A abertura diz: "O ministro da Defesa, Geraldo Quintão, fará nesta semana uma visita a nove unidades militares na Amazônia. O objetivo é coletar informações para propor um aumento do orçamento do Projeto...".
De imediato senti que havia algo estranho. O assunto, corretamente ou não, estava fora da mídia havia tempo; a Folha não tem por hábito fornecer tanto detalhe quanto se lia nesse texto sobre viagens a serem feitas por ministros. Mais: o título e o sobretítulo -"Objetivo do projeto é a ocupação de uma das regiões menos habitadas do país, com apenas 1,2% da população"- resvalavam em tom oficioso.
O mal-estar cresceu na quarta, quando nova reportagem, no mesmo diapasão, foi publicada. Título: "Defesa da fronteira recebe menos verba que em 2000".
Com poucas alterações -mais precisão em dados de investimentos e de verbas-, o texto era quase reprodução do primeiro. A informação que lhe deu o título, sintomaticamente, já constava da reportagem do domingo.
Ao pé, uma explicação: "O jornalista Fernando Rodrigues viajou ao Amazonas e a Roraima a convite do Ministério da Defesa. Nos trechos em que havia vôos comerciais disponíveis, a Folha arcou com as despesas".
Ou seja: o primeiro texto, na prática, tivera como função "vender" a viagem do ministro para a qual a Folha havia sido convidada.
Outra matéria foi publicada quinta-feira, dando conta de declarações de Quintão contrárias à demarcação contínua de terras indígenas. Ele também negava haver abuso sexual de índias por parte de militares em Roraima. À diferença dos iniciais, esse texto se cobriu de outros, com posições contrárias às do ministro.

Pauta terceirizada
O repórter Fernando Rodrigues, um dos mais experientes da Folha, considera "praxe do jornal" fazer a apresentação de eventos -no caso, a viagem do ministro. "Na cobertura de uma viagem", acrescenta, "é normal mandar o máximo de matérias, até para não tomar furo do concorrente (no caso, o "Estado de S.Paulo", também convidado)".
Sem dúvida, a Folha está certa e é transparente ao dizer que o jornalista viajou a convite (o que o concorrente, diga-se, não fez). Mas a questão é outra: não fosse a viagem a convite do ministro, daria o jornal tamanho espaço ao assunto?
É ao leitor que interessa tanto o tema Calha Norte, a ponto de este merecer três reportagens grandes em cinco dias, ou elas só existiram porque o Ministério da Defesa tomou a iniciativa?
Como escrevi na crítica interna na quarta-feira, "o registro de que o repórter viajou a convite do governo, embora importante, não compensa... a aparência de uso do jornal por uma espécie de lobby do ministro da Defesa... em sua batalha por mais verba". Com tais coberturas em cascata, propiciadas por viagens a convite, o que se faz é abrir a possibilidade de que a pauta do jornal seja determinada por agentes outros que não o interesse público ou o do leitor.



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