São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2001

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OMBUDSMAN

Os invisíveis

BERNARDO AJZENBERG

Seis anos atrás, quando da comemoração dos 300 anos da morte de Zumbi, a Folha publicou um caderno intitulado "Racismo Cordial".
Baseado em ampla pesquisa feita pelo Datafolha, artigos e entrevistas, o trabalho demonstrava, de modo estatístico e transparente, a forma particular de que se reveste a discriminação racial no país.
Algo que estudiosos já haviam apontado ganhava, ali, reafirmação científica, atualização e extraordinária divulgação. Houve polêmica, ampla repercussão.
Outras publicações também trouxeram reportagens sobre o assunto, conferindo à efeméride um destaque inédito.
Aquilo que poderia ter significado a inauguração de uma modificação estrutural no tratamento dedicado pela imprensa como um todo à questão do racismo acabou, no entanto, por engavetar-se.
A verdade é que, de lá para cá, refletindo a indiferença velada para com o tema que perpassa a sociedade brasileira (em que pese o fato de ao menos 44% dos habitantes do país serem oficialmente negros), a imprensa pouco alterou o seu comportamento na cobertura de formas específicas, mais ou menos subliminares, de expressão do racismo.
Este continua como tema tabu, sob o disfarce, de há muito desmascarado, da suposta democracia racial brasileira. E não configuraria exagero afirmar que o seja justamente pelo grau de explosividade que carrega.
Com raríssimas exceções, o racismo e suas mazelas não frequentam as pautas diárias, estão alijados de qualquer iniciativa regular e permanente.

Deslizes
Permanece atual um célebre trecho do livro "O Homem Invisível" (1952), do americano Ralph Ellison (1914-1994), cujo protagonista, negro, lamenta:
"Eu sou invisível, entenda, simplesmente porque as pessoas recusam-se a me ver. Como as cabeças sem corpos que às vezes se vêem em exibições circenses, é como se eu estivesse rodeado de espelhos feitos de vidro grosso e distorcido. Quando eles se aproximam de mim, vêem somente o que está à minha volta, ou suas próprias invenções e imaginações -tudo e qualquer coisa, menos a mim".
Tudo isso, sem considerar os deslizes involuntários e no entanto ativos de caráter racista cometidos pela própria imprensa, inclusive a Folha.
Para recordar um exemplo prosaico -mas nem por isso menos relevante-, felizmente registrado e criticado com transparência nesta coluna pela ombudsman que me antecedeu, Renata Lo Prete: num teste bem-humorado aplicado aos leitores em 25 de julho de 1999 para verificar o quanto estes poderiam ser considerados paulistanos de verdade, uma "inocente" ilustração sobre violência na cidade trazia o assaltante como um rapaz negro e a vítima como uma moça branca, de cabelos claros.

Cobertura pífia
Absurdo corriqueiro, essa invisibilidade se expressa, agora, na pífia cobertura que vem sendo dada pela imprensa à preparação da Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância, que começa dia 31 de agosto e vai até o dia 7 de setembro em Durban, na África do Sul.
Não só a esse encontro oficial da Organização das Nações Unidas (ONU), diga-se, mas também ao fórum de organizações não-governamentais e entidades que se realizará na mesma cidade, sobre o mesmo tema, antecedendo a conferência, a partir desta terça-feira.
Quantos leitores sabem que, há cerca de um ano, inúmeras reuniões se realizam para preparar o evento, aqui e em inúmeros países? Quais são as propostas e os pontos mais polêmicos, em nível internacional? Por que os EUA vinham ameaçando até há poucos dias boicotar o evento?
Somente nas últimas duas semanas a Folha começou a atentar, de modo mais sistemático, para os problemas que serão discutidos em Durban, enquanto boa parte dos outros jornais do país continua distante.
Tal indiferença não se manifestou por ocasião de conferências anteriores da ONU, sobre direitos humanos em Viena, em 1993, e sobre direitos das mulheres, em Pequim, em 1995, para mencionar dois exemplos de acontecimentos que receberam ampla cobertura da imprensa, antes e depois.

Ponto de partida
Evidentemente, o que se discute, aqui, não é apenas o noticiário sobre o encontro da África do Sul, mas aquilo que está por trás, à frente e em torno dele, ou seja: até quando a imprensa, relegando-a a terceiro plano, compactuará com a invisibilidade, com a existência da discriminação?
A gravidade da interrogação é ainda maior se se considera que os preconceitos a serem debatidos incluem aqueles existentes contra os índios e as chamadas minorias.
Talvez Durban comece a ganhar mais destaque e atenção da imprensa nos próximos dias -é o mínimo que se espera.
Mas seria lamentável, após sua realização, deixá-lo transformar-se apenas num marco -como as comemorações dos 300 anos da morte de Zumbi- e não torná-lo ponto de partida para reflexão e mudanças na abordagem da intolerância racial no Brasil pela imprensa.



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