São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2008 |
Próximo Texto | Índice
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA - ombudsman@uol.com.br Quem se lembra do caso Isabella?
A COBERTURA do caso Eloá em Santo André pela Folha foi acanhada, acrítica e burocrática. O jornal tem todo o direito de decidir apenas registrar casos policiais como este. Pelo meu gosto, é exatamente o que deveria fazer. Mas, se resolve que um crime é importante, ou investe e faz a coisa direito ou sofre pelo trabalho malfeito. Por dez dias, o episódio constou da primeira página, sete com foto. É claro que era prioritário para a Redação. Mas até sábado, o espaço para o noticiário foi pequeno e, mesmo depois, o esforço foi inconstante: alguns dos melhores repórteres entraram e saíram; a maior parte das retrancas era de declarações públicas e fatos já noticiados pela mídia eletrônica. Faltou espírito crítico. Registraram-se opiniões contrárias à volta da amiga da namorada ao cativeiro desde o primeiro dia, mas de modo geral em tom ameno. Faltou "vontade editorial". As versões da polícia ganharam sempre mais destaque, a ponto de na terça-feira o perfil de um dos negociadores o retratar quase como herói. É justo mostrar o lado dos policiais e realçar seus aspectos positivos. Mas elegias numa operação que claramente fracassou são inadequadas. O jornal foi burocrático ao acompanhar a tragédia. Limitou-se quase sempre a dar informação bruta, que o leitor provavelmente já havia recebido pelo rádio ou TV. Houve pouca análise, interpretação, informação exclusiva. Meu antecessor Mário Vitor Santos em artigo para a revista "msg" (indicação abaixo) lembra que "o bom teatro lida com os instintos mais básicos da platéia, mas também suscita reflexões sobre a natureza profunda do ser". Não se pode exigir que jornalistas sejam Shakespeares. Mas eles bem podem jogar luzes sobre desgraças como esta, oferecer visões psicanalíticas, sociológicas, promover o debate sobre políticas e instituições públicas envolvidas (da polícia aos conselhos tutelares, do governo à mídia). Da mídia, por exemplo, este jornal só começou a tratar na terça-feira. E modestamente. Muitos leitores escreveram para se queixar dela. De fato, os meios de comunicação ajudaram muito para criar esses infortúnios: ao tornarem o assassino uma celebridade, interferirem na ação das autoridades, transformarem o drama em circo e incentivarem a curiosidade mórbida do público, que impediu a família até de se despedir em paz da vítima. Mas isso não é exclusividade nem do Brasil nem destes tempos. Talvez seja inevitável. Ocorre em todos os países. Veja-se o caso do pai que aprisionou a filha na Áustria. E em todos os tempos. A revista "O Cruzeiro" tratou o caso Aída Curi, há 50 anos, com tons de sensacionalismo que fazem o jornalismo atual parecer sóbrio (ver indicação de livro abaixo). Mesmo sem mídia, o prazer doentio de ver detalhes de tragédias emerge a toda hora. Quem já não testemunhou dezenas de motoristas reduzirem a velocidade para olhar o motoqueiro caído na rua? O ser humano é assim. O que não impede que se tente melhorar. Próximo Texto: Tudo que é sólido se desmancha no fim Índice Carlos Eduardo Lins da Silva é o ombudsman da Folha desde 22 de abril de 2008. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
|
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |