UOL


São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

Próximo Texto | Índice

OMBUDSMAN

O tiro e a foto

BERNARDO AJZENBERG

Muito se escreve e se teoriza sobre a idéia de que a fotografia, no jornalismo, não deve ser só elemento auxiliar do texto, uma imagem mais ou menos bem acabada que o editor usa para equilibrar esteticamente a página ou, em muitos casos, simplesmente para tapar buraco.
Na prática, porém, são raros os momentos em que as fotografias ganham vida própria, intensidade, relevância e repercussão superiores, até mesmo, às do texto.
Pois isso aconteceu nas edições de quinta-feira do "Agora" -jornal editado pelo Grupo Folha- e da Folha nas reportagens sobre a morte do fotógrafo Luis Antônio da Costa, da revista "Época", assassinado durante alvoroço ao lado do acampamento dos sem-teto em São Bernardo do Campo (SP).
O mérito, aqui, coube ao repórter-fotográfico André Porto, do "Agora", que, unindo instinto, técnica e faro jornalístico num momento único, tumultuado e dramático, registrou um homem com uma arma na mão em fuga logo após o disparo que matou Costa.
Nos dias seguintes, viu-se mais: a sequência de fotogramas permite, na verdade, identificar também a possibilidade de outros suspeitos, como a Folha publicou ontem.
Esta coluna, em regra, registra queixas de leitores, aponta ou comenta falhas dos meios de comunicação. Peço licença, excepcionalmente, para fazer uma pequena alteração, dando espaço a um resumo de um depoimento de André Porto, 30, com quem conversei ao telefone na noite de sexta-feira, sobre seu trabalho:
"Foi tudo muito instintivo, rápido, mas também tive de fazer um raciocínio técnico: estava com uma lente grande-angular, que abrange uma área ampla de visão, sabia que tinha filme e lembrei que estava sem flash. Vi então que podia e devia fazer o registro sem ser notado."
"Levantei a máquina e disparei, para ter uma sequência, sem olhar no visor. Se não fizesse ali, naquele instante, nunca mais."
"Minhas pernas tremiam muito. Não tinha certeza absoluta de tudo o que eu ia conseguir captar na hora. Apareceu a chance de identificar um provável assassino. A foto diz muito mais do que o que eu sabia no instante em que a fiz."
"Tive uma reação de jornalista mas também de cidadão, de produzir um testemunho valioso."
"A situação é bastante chata. Não deu para sorrir. Sinto agora até um pouco de vergonha de estar feliz por causa disso, mas foi o que de melhor eu pude fazer naquela hora."
 
A Folha teve o mérito, nessa cobertura, de editar na Primeira Página a fotografia a que me referi, mas cometeu, a meu ver, um equívoco -também relativo a imagens.
Foi ao não publicar, nem mesmo nas páginas internas, a fotografia de Luis Antônio da Costa sendo carregado por algumas pessoas, divulgada, diga-se, em todos os jornais.
Para a secretária de Redação Paula Cesarino Costa, a imagem era "chocante" e "sem carga informativa relevante, que valesse sua publicação".
"Que informação a foto do corpo do fotógrafo ensanguentado acrescenta ao texto que diz que o fotógrafo foi morto com um tiro?", indaga a jornalista.
Ela nega, por outro lado, a hipótese de que a decisão tenha derivado de alguma espécie de corporativismo pelo fato de a vítima ser um jornalista: "Faríamos da mesma maneira se fosse um engenheiro ou um arquiteto".
A publicação de uma foto como essa é, como sempre, polêmica -entre jornalistas e entre leitores- e envolve certo grau de subjetividade.
Penso que essa imagem, embora forte e impactante, não veste a camisa do sensacionalismo. Foi tirada à distância; não se vê, nela, o rosto da vítima. Ela adiciona, por outro lado, uma informação visual capaz de enriquecer a reportagem, transmitindo com mais nitidez ao leitor, sem chegar a agredi-lo, toda a dramaticidade do evento e dos seus momentos imediatamente subsequentes.
Estaria, assim, dentro do limite do publicável, em página interna, num jornal como a Folha.


Próximo Texto: Síndrome de avestruz
Índice


Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br.
Contatos telefônicos: ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira.

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.