São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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OMBUDSMAN

Mosca na sopa

BERNARDO AJZENBERG

Ao ler a Folha quarta-feira, captei um erro ortográfico chato. Foi no texto em que Pedro Malan comentava a "Carta ao Povo Brasileiro", divulgada pelo candidato do PT à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva.
Atribuía-se ao ministro da Fazenda a seguinte declaração: "Só posso saldar isso [a postura de Lula" como algo positivo...".
Anotei o erro -o certo seria "saudar", com "u"- para comentá-lo em crítica interna. Pouco depois, um fax chegou, e, nele, um assinante do jornal se dizia "estarrecido". "Essa é de lascar", reclamava. E, após sugerir "um cursinho de português" ao responsável, concluía: "Leitor da Folha há meio século, fico triste de ver esses escorregões".
Alertar para erros de português não está entre as atribuições principais do ombudsman. O jornal tem um programa específico para isso. O tal fax, porém, deixou claro que erros de forma (gramática, digitação, linguagem) podem ser tão irritantes e agressivos para com os leitores quanto os chamados erros de conteúdo (informação equivocada, por exemplo).
O problema ganhou dimensão maior, na última semana, devido também a outros tropeços.
Na segunda, texto de orientação a investidores começava assim: "Não haja sob impulso". Isso mesmo, com agá (verbo haver), quando o correto seria aja (de agir).
Na terça, outro deslize, na boca do líder palestino Iasser Arafat: "Israel, com esses contínuos ataques, está revelando ao mundo quais são suas reais intensões". Com "s" em vez do "ç".
Conversei com o professor Pasquale Cipro Neto, colunista do jornal, sobre esses casos. Para ele, erros desse tipo não decorrem obrigatoriamente da ignorância. Podem ser fruto de um fenômeno de condicionamento da memória do jornalista, que, na pressa do fechamento da edição, prioriza um registro automático derivado da incidência maior ou menor do uso dessa ou daquela palavra.
No caso do "haja", por exemplo: como as pessoas costumam usar muito mais a palavra "haja" do que "aja", o "piloto automático" da escrita apressada acaba privilegiando a primeira (incorreta). O mesmo valeria em saudar/saldar.
No terceiro caso, há uma diferença, já que, embora a palavra intensões (com "s") exista (sinônimo de intensidade, veemência, segundo o "Aurélio"), ela é de uso quase nulo.

Qualidade
Depois de lembrar que o jornal extinguiu a figura do "revisor" desde os anos 80, o coordenador do Programa de Qualidade da Folha, Rogério Ortega, explica que, para a empresa, "os jornalistas têm de se responsabilizar pela correção das informações e da linguagem, e não delegar essa responsabilidade a terceiros".
As atividades do PQ, diz ele, têm caráter "fortemente preventivo". Um resumo delas: os erros são repassados às editorias; todos têm metas a cumprir; jornalistas são avaliados e premiados também com base nisso; há um "mural" na Redação voltado para erros graves; uma professora dá assistência sete horas por dia; à disposição, existem, ainda, o dicionário "Aurélio" eletrônico, um corretor ortográfico e obras de referência.
Segundo Ortega, o jornal mantinha em junho o seu melhor desempenho deste ano (a média de erros/coluna caiu de 0,62 em março para 0,50).
Como é possível que, mesmo com todo esse aparato, ainda se cometam erros crassos?
Para o coordenador, isso "resulta de um misto de desatenção no trabalho de fechamento e deficiências culturais básicas de alguns jornalistas".
A avaliação faz sentido, mas não basta ir por aí. Os casos que mencionei (veja o quadro acima), surgidos um em seguida ao outro, expõem uma vulnerabilidade mais profunda.
Mais do que individualizar os erros -algo necessário-, trata-se de recuperar uma cultura da excelência, um grau de exigência superior, incorporado pelas equipes e em cada profissional.
Como explicar que esses três erros, por exemplo, forjados na chamada edição nacional (que fecha por volta das 20h), tenham sobrevivido na edição SP/DF (fechada em torno das 23h)?
Ou seja: mesmo que as causas tenham sido o "piloto automático" ou a pressão do tempo, e não as "deficiências culturais básicas", três horas havia para reler o material e fazer correções -o que não aconteceu.
Cabe perguntar até que ponto o tal "piloto automático" se faz presente apenas no lapso individual de quem concebe o texto; se ele não se aloja, também, no sistema de exigências (ou na insuficiência destas) administrado em esferas mais amplas, coletivas, da Redação.
Por mais que seja isolado ou que se o considere, às vezes, menos importante, para muitos leitores o erro crasso de português é mosca na sopa: estraga toda a leitura do jornal do dia.


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