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Amarildo, 43
Não são incomuns, em qualquer Estado brasileiro, os episódios em que cidadãos sem antecedentes criminais terminam mortos em suposto "confronto" com a polícia.
Em meio à maré de infelicidades e desacertos que atinge o governo Sérgio Cabral (RJ), o caso do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza ganha especial destaque.
"Onde está Amarildo?" A pergunta se dissemina pelos meios sociais desde que, no dia 14 de julho, quatro recrutas da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) o detiveram, em frente de sua casa, na favela da Rocinha. Pai de seis filhos, 43 anos, o ajudante de pedreiro teria sido confundido com um determinado traficante.
Amarildo nunca mais foi visto. As últimas notícias que se têm a seu respeito vêm do major Edson dos Santos, comandante da UPP. "Olhei para ele, para a foto, vi que não era o tal do Guinho e liberei."
Muitos são os indícios de que Amarildo tenha sido morto pela polícia logo em seguida. As duas câmeras da UPP estavam coincidentemente queimadas naquele dia. Ao mesmo tempo, o GPS da viatura também deixou de funcionar.
"Ele sempre dizia que revidaria se fosse agredido por um policial", conta sua irmã. "Dizia que trabalhador não pode levar tapa na cara e ficar quieto." O mistério se prolonga, num ambiente em que, bem ou mal, a população se mostra alerta. A pergunta sobre o paradeiro de Amarildo corre o país.
Veiculam-na, sem dúvida, grupos identificados com a agressão sistemática ao Estado, numa simbiose entre extremismo político e oportunismo criminal.
Veiculam-na também, por outro lado, os muitos cidadãos de bem que identificam, na ação desmesurada das polícias estaduais, uma fonte suplementar de insegurança.
Já durante os protestos de junho, a revolta contra a truculência policial alternou-se com a perplexidade diante da inação das forças de segurança diante dos mais inadmissíveis casos de vandalismo.
Retorna-se agora à lamentável rotina em que sobre a polícia recaem suspeitas de assassinato a sangue frio. Ironicamente, é numa das vitrines da administração Sérgio Cabral --o policiamento comunitário nas favelas--que se dá o desaparecimento de Amarildo.
O fato, até pouco tempo atrás, não teria infelizmente causado comoção. Algo mudou no país, entretanto. Resta saber se o Estado brasileiro terá capacidade de acompanhar essa mudança.