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Hélio Schwartsman
Eta, povinho autoritário
SÃO PAULO - Estou até agora recebendo e-mails indignados de médicos e procuradores pela coluna de sexta, em que critiquei a atitude de uma obstetra e de uma juíza do RS de obrigar uma mulher a fazer uma cesariana contra a sua vontade.
Os defensores da medida sustentam que, dadas as condições clínicas (feto em apresentação pélvica, gravidez pós-termo e duas cesarianas prévias), o procedimento cirúrgico era o mais indicado e que a paciente não tinha o direito de colocar em risco a integridade física da criança.
Eu talvez comprasse o argumento se estivéssemos lidando com certezas. Se a grávida estivesse apontando uma arma para seu útero e fosse disparar, uma intervenção policial seria provavelmente legítima. Mas este está longe de ser o caso, o que nos coloca numa discussão quase metafísica sobre o que é um risco aceitável.
Obviamente concordo que a cesárea era o mais indicado. Há farta literatura a sustentá-lo. Mas protocolos médicos não são destino. São apenas um modelinho matemático mostrando o que tende a funcionar melhor para casos parecidos. E, neste caso, a chance de o bebê sobreviver sempre foi maior que a de morrer. O risco de morte perinatal em apresentação pélvica vai de 0,26% na cesárea para 1,15% no parto vaginal (revisão Cochrane, 2003). Somando as outras condições dela (pós-datismo, cesárea prévia) talvez dobrássemos essa cifra. É muito para uma gravidez, mas não chega a ser uma roleta russa.
O que é um risco razoável? 1%? 5%? Aqui não há respostas objetivas, o que nos condena a aceitar a subjetividade e, por conseguinte, a reconhecer a autonomia do paciente.
Vale observar que grávidas podem totalmente dentro da lei submeter seus fetos a riscos talvez maiores, como escalar o Everest, fazer mergulhos em profundidade ou beber até entrar num coma alcoólico. Aí, "salvar" os bebês exigiria decretar que grávidas são, ao lado de menores e loucos, cidadãs com menos direitos.