Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Opinião

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Joel Rufino dos Santos

TENDÊNCIAS/DEBATES

Banana é bom e faz crescer

Desde que o futebol virou uma profissão, craques negros são hostilizados. A vergonha de ser racista é que acabou, ou está acabando

Há 70 anos, havia consenso entre os analistas sobre o declínio do racismo antinegro no Brasil. Modernização capitalista, miscigenação intensa e continuada garantiam essa previsão. A promiscuidade entre as raças, para o bem e para o mal, impedira a segregação --que marcava, essa sim, o caso norte-americano.

Os brasileiros negros, quando se organizavam em clubes recreativos, de autoajuda, escolas noturnas profissionalizantes, declaravam querer isso: integrar o negro, fazendo-o valer mais no mercado de trabalho para, dessa forma, participar do progresso nacional. Queriam se sentir tão ou mais brasileiros que os outros.

Após 125 anos do fim do escravismo --do escravismo, porque o trabalho escravo ainda existe--, as manifestações de racismo antinegro explodem nos estádios brasileiros.

Muitos se surpreenderam com a agressão da torcida do Mogi ao meia Arouca, do Santos, em março, no dia seguinte à agressão sofrida por um juiz no Rio Grande do Sul. No entanto, desde que o futebol virou uma profissão, lá por 1930, grandes craques negros --um Fausto, um Jaguaré, um Valdemar, um Leônidas, um Zizinho, um Pelé-- e pequenos, cujo número é infinito, foram hostilizados e prejudicados pelo racismo. Os que agora se surpreendem --cronistas, apresentadores, jogadores, técnicos-- não aprenderam na escola como nosso país se formou. De brincadeira, vão dizer que faltaram a essa aula. Não sejam rigorosos consigo mesmos, os que foram à escola não tiveram essa aula. Monteiro Lobato confessou que a única coisa que se lembra da história do Brasil é que o bispo Sardinha foi devorado pelos caetés.

Todos sabem que o Brasil teve escravidão. Alguma coisa nos impede de saber mais. Em alguma aula do curso elementar, nos disseram que "os negros foram escravos porque os índios não se adaptaram à escravidão". Como se diz na gíria, fala sério. A escravidão de índios no Brasil foi a maior da América do Sul, durou 250 anos. A dos negros, 350. O racismo, antinegro e anti-índio, é uma das colunas da formação brasileira.

O nosso racismo é envergonhado, tanto que alguém acusado de preconceito e discriminação racial se defende dizendo que tem amigos e, às vezes, até parentes negros. Diante de uma ofensa racista, sentimos vergonha pelo ofensor --no fundo, de nós mesmos. Tinga e Arouca são artistas doces e inteligentes da bola, que vergonha por quem os agrediu! Temos racismo em todas as suas formas --o preconceito, mais brando, a discriminação, mais eficaz, o racismo propriamente dito, estrutural, que organizou as nossas relações de trabalho, nossos hábitos, nossa moral pública.

No Carnaval, um bloco cantou: "Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é, será que ele é?". O que se insinua aí é que todos sabem que ele é, mas precisam comunicar a condição do Zezé. Bom, essa é uma peculiaridade do racismo brasileiro: como tem vergonha de ser, é preciso uma rede Brasil curtir a novidade, sem exceção. O país sempre foi racista --e chega a comover o esforço de militantes do movimento negro para convencer o Brasil do óbvio.

Por que a perda da vergonha? Um dos vetores deve ser a barbárie, palavra que tem milhares de acepções. Aqui é a vida que transcorre toda no estágio dos instintos primários: reproduzir, comer, sobreviver. Ou dito de outra maneira: sexo, consumo, violência. Há uns 50 anos, a vida do mundo civilizado parece caminhar para trás, não se diferenciando mais da vida primitiva. Não há hoje povo conhecido sobre a Terra que seja bárbaro. Todos criaram uma teia, às vezes fina, às vezes densa, de civilização --poesia, música, curiosidade intelectual, língua, filosofia, fundamento (outro nome de tradição) e destino (transcendência). Salvo as massas urbanas. Essas estão prontas, "everytime", "everywhere", para o espetáculo das torcidas organizadas.

A vergonha de ser racista é que acabou, ou está acabando. Se na Copa pularem feito macacos atirando bananas no campo, dou meu conselho aos jogadores negros. Façam como Daniel Alves esta semana: descasquem as bananas e comam. Essa também é uma tradição brasileira: o que vem a gente traça. No final do processo digestivo, a ofensa se transformará no que verdadeiramente é --aquela "coisa" amarelada.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página