Walter Ceneviva
TENDÊNCIAS/DEBATES
Votos falsos
Passado quase um mês do 2º turno, é tempo de pensar em consolidar o significado do voto, que consagre os que se elegeram por seus méritos
O Código Eleitoral enuncia, no artigo 219: " Na aplicação da lei eleitoral o juiz atenderá sempre aos fins e resultados a que ela se dirige, abstendo-se de pronunciar nulidades sem demonstração de prejuízo". A severidade da lei considera anulável a votação viciada por fraude, coação ou outras irregularidades que falseiem o resultado do pleito.
O enunciado da norma legal parece muito claro, no referente à preservação dos fins e apurações do pleito e no veto a resultados viciados que sacrifiquem qualidade e dignidade da opção pelo eleitorado. Trago essa consideração porque lembrei de um texto de Justus Wilhelm Hedemann, catedrático da Universidade de Berlim, em 1950, mas ainda muito atual.
No prefácio de livro jurídico de sua autoria, acentuou a necessidade de voltarmos à "solidez na formulação dos conceitos", neste tempo de veloz transformação da vida e do direito, para a "ordenação do pensamento".
Em matéria eleitoral, o pensamento brasileiro está desordenado; a classificação dos vitoriosos é tão elástica que, em certos casos, privilegia até quem esteve próximo de ser eleito apenas com seu voto. Parece exagero, mas não é.
Dou o exemplo oposto, de dois eminentes políticos brasileiros, Celso Russomanno (PRB-SP) e Tiririca (PR-SP), cujo índice de votação individual ultrapassou o milhão de sufrágios. Decorreram, do prestígio individual de ambos, enormes benefícios para suas legendas, graças ao que se chama, no direito brasileiro de "representação proporcional", produto político vinculado ao chamado "quociente eleitoral".
Por força dessa proporcionalidade (estranha, porém, rigorosamente legal), criou-se situação teratológica: candidatos com votação mínima foram eleitos, terão salários pagos pelo povo, sem terem intimidade com o mesmo povo, que a Constituição diz titular de todo poder.
O exemplo de Tiririca e Russomanno não tem a pretensão de criticar os dois ilustres parlamentares. Quer apenas mostrar o absurdo da distribuição do quociente eleitoral, sem nenhuma ligação com a qualidade ou o valor pessoal dos campeões de votos.
A distorção parte do caminho aberto, entre partidões, partidinhos e até de não partidos, para as composições. A situação não nasceu com o último pleito. O atual quociente eleitoral praticado pelo Brasil foi introduzido com a lei nº 7.454/85, com apenas uma mudança, desde então, quando excluído o parágrafo único do artigo 106.
A Câmara dos Deputados acolhe, em Brasília, gente que talvez não se elegesse, com os sufrágios recebidos, nem para a Câmara de Vereadores de seus municípios. Essa realidade precisa mudar já para o próximo pleito.
Visto o resultado dos ilustres milionários do voto, parabéns a eles. Está na hora, porém, de parar com o sistema que predominou, lamentavelmente, no pleito deste ano. Deslustra a formação do palco destinado a acolher as vozes de todo o povo no Congresso Nacional.
Não é só que deslustre o Parlamento. Também é ruim por empurrar, da goela do povo para baixo, uma deformação da casa política do povo na estrutura legal do país.
No pleito deste ano chegamos ao avanço máximo em matéria de aperfeiçoamento tecnológico, com a votação eletrônica, dado importante no progresso democrático.
Passados quase 30 dias do segundo turno, é tempo de começarmos a pensar em consolidar o significado do voto, que consagre os verdadeiramente eleitos por seus méritos.