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Guaracy Mingardi

Internar compulsoriamente onde?

Apesar da discussão do momento ser sobre internação compulsória, o buraco é mais embaixo: o Estado vai internar onde? Onde estão as vagas?

Um dos maiores poetas da Grécia antiga, Píndaro, escreveu que "o dia precedente é o mestre do dia seguinte". É uma diretriz muito boa, que deve ser seguida na condução dos negócios humanos, principalmente quando o Estado decide colocar a sua estrutura policial em ação.

E o desencontro entre o discurso oficial e a ação da Polícia Militar no centro de São Paulo para combater os usuários de crack mostra que ninguém pensou muito no dia seguinte, quando a operação acabar e a polícia voltar para sua rotina.

É bom ressaltar que ignorar o problema, política comum durante os quase vinte anos de existência da cracolândia, é bobagem. Deixar as pessoas se matando lentamente no meio da rua e abandonar importantes áreas da cidade não é uma política pública, é descaso absoluto.

Por outro lado, não adianta só reprimir os usuários, não deixando com que eles se agrupem em grandes bandos. São necessárias também medidas de saúde pública, reestruturação urbana etc.

Esta não é a primeira operação desse tipo na cracolândia. Ocorreram outras. Todas tiveram muito impacto, mas efeito temporário. A última aconteceu no início da administração Serra na prefeitura.

O resultado foi tirar os "noias" de perto da rua do Triunfo. A proposta era reurbanizar o local, levar para lá universidades, empresas etc. A presença constante de uma base móvel da PM melhorou o local, mas nenhuma universidade ocupou o espaço. Ele continua cheio de imóveis degradados.

Já os "noias" se espalharam por todo o centro da cidade até, algum tempo atrás, se fixarem a 500 metros do ponto de partida, na área da rua Dino Bueno.

A operação recente começou da mesma forma que a última, com um trabalho policial de repressão aos usuários. Além dos casos de violência gratuita, aconteceram alguns problemas operacionais. O mais gritante é a falta de repressão ao tráfico. Foram presos só alguns microtraficantes, a maioria usuários. Nenhum traficante que abastece a região foi para a cadeia. Quando a tudo sossegar, eles voltam à atividade.

Além disso, os usuários foram empurrados em bando de um lado para outro por veículos policiais. Se o objetivo era dispersá-los, porque todos eram sempre conduzidos na mesma direção?

O maior problema, porém, é a falta de planejamento. Não houve sincronia entre a prefeitura e o Estado. O prefeito admitiu não saber sobre a operação. A guarda municipal entrou a reboque da PM. A área social da prefeitura, por sua vez, ainda nem começou a se mobilizar.

E o usuário que quiser sair dessa vida, para onde ele vai? Apesar da discussão do momento ser sobre o direito do Estado de internar compulsoriamente, na verdade o buraco é mais embaixo. Internar onde? Onde estão as vagas?

O melhor que pode advir desta operação é a dispersão dos "noias" pela cidade. Assim, nenhuma TV vai flagrar uma multidão de drogados em ano eleitoral. Grupos de oito ou dez pessoas usando drogas em locais públicos, porém, podem se tornar mais visíveis para o eleitor.

Antes de algum figurão vir a público cantar vitória, seria bom lembrar quando Bush, em um navio americano, proclamou "missão cumprida", enquanto a guerra do Iraque estava no seu primeiro ano.

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