Hélio Schwartsman
Tu, cobarde
SÃO PAULO - "Tu choraste em presença da morte?/ Na presença de estranhos choraste?/ Não descende o cobarde do forte;/ Pois choraste, meu filho não és!". O leitor de boa memória deve ter reconhecido os versos de "I-Juca Pirama", em que Gonçalves Dias captura o paradoxo da bravura: ela só existe porque existe a possibilidade de covardia.
O herói do poema, I-Juca Pirama, era tão valente que não temeu passar por covarde, a fim de cumprir suas obrigações filiais. No final, tudo se inverte e o índio opta pela morte com honra, mas fica o registro das incongruências da coragem.
Chris Walsh, autor de "Cowardice" (covardia), não menciona Gonçalves Dias, mas recorre a Homero, Platão, Aristóteles, Dante, Montaigne e, principalmente, à história militar para destrinchar a noção de covardia. Ele até propõe uma definição: "o covarde é aquele que, por excesso de medo, deixa de fazer aquilo que deveria". É o primeiro, porém, a reconhecer que a definição não resiste aos testes da realidade.
Walsh mostra que é possível ser covarde por ter pouco medo. A introdução do conceito de dever na definição tampouco ajuda. Para falar em dever, afinal, é necessário ter mais ou menos claro o que significam agência moral e livre-arbítrio.
Gostei particularmente da observação do marechal Georgi Jukov: "No Exército Vermelho, é preciso ser muito valente para ser covarde". É que os soviéticos, após a proclamação da ordem nº 227, que proibia os soldados de recuar, puseram em campo as temíveis companhias penais, que fuzilavam imediatamente qualquer homem que parecesse fugir. Estima-se que centenas de milhares tenham sido mortos por esses pelotões.
"Cowardice" é erudito, bem escrito e gostoso de ler, ainda que seja algo inconclusivo. Traz elementos suficientes, porém, para perceber que Stálin e o pai de I-Juca Pirama foram severos demais. O homem, afinal, precisa de vícios para ser virtuoso.