Carlos Heitor Cony
O suicídio e a lucidez
RIO DE JANEIRO - Pelo menos, até agora, quando escrevo esta crônica com antecipação, não se sabe ao certo o que houve com o avião que caiu em solo francês, numa viagem de Barcelona até Düsseldorf, na Alemanha, matando mais de cem pessoas. A versão que está sendo dada é tétrica.
O copiloto, de 28 anos, teria derrubado propositadamente o Airbus A320. Não se sabe, pelo menos até agora, os motivos que o levaram ao suicídio. Aparentemente não deixou o bilhete em que os suicidas geralmente tentam explicar aquilo que os jornais chamam de gesto de desespero. Ou qualquer vestígio para que outros o entendam: amigos, parentes, amadas, falência, vingança ou causa política.
Gorki tem um conto em que dois amigos moram juntos, um deles sai para trabalhar, quando volta encontra o companheiro pendurado numa corda. Este pelo menos deixou um bilhete para explicar ou justificar o seu suicídio: "Faltou-me um truque".
Para que alguém continue vivendo, é necessário um macete pessoal, intransferível. Viver é muito perigoso --disse Guimarães Rosa. Nem todos têm a lucidez dos suicidas. Outro escritor, Albert Camus, considerou o suicídio o único problema que cada um tem de resolver. Nem sempre é um ato de desespero, mas de consciência, que dá ao homem a lucidez final e merecida.
No caso do Airbus que caiu em território francês, o grande truque do copiloto foi ter levado consigo tanta gente que nada tinha a ver com sua lucidez, melhor falando, com o truque que lhe faltava.
Um imperador romano, que vivia num exílio voluntário em Capri, longe das crises políticas da Roma antiga, desejou que todos os homens tivessem um só pescoço, para num só golpe de espada, decapitar todos. Pessoalmente, tenho bastante truques para impedir ou adiar este tipo de lucidez.