Walter Ceneviva
Águas de Deus e dos homens
Cabe ao poder público impedir o agravamento de efeitos danosos da natureza, como as chuvas, e cessar a omissão que dura anos
Nos últimos tempos, ruas alagadas e torneiras secas compõem o dueto de sustos e queixas que marcaram a vida dos habitantes de São Paulo. Para azar da população, com consequências danosas para suas vítimas. Chuvas fortes e escoamento fraco geram duas constatações.
A primeira é paradoxal: obras consideradas imprescindíveis contra inundações nem mesmo foram iniciadas. A segunda se mostrou mais complexa: aqui e ali houve obras insuficientes. Não tiveram capacitação para recolher a precipitação média do período das chuvas. Exemplo gritante na cidade com o maior número de carros deste país foi enorme o prejuízo dos veículos "naufragados".
Em outro plano, o drama da falta de água potável é subproduto da negligência. Chega a causar prejuízo à Sabesp, com o consumo diminuído. Em períodos de seca prolongada, há consumo crescente de água potável para fins estranhos à sede humana.
Aquele, porém, que sofrer prejuízo por falta de água tem duplo direito: o de reclamar o reparo integral do dano sofrido e a satisfação integral da cobrança contra o poder público, gerado pela insuficiência do fornecimento.
São matérias que não podem escapar da atenta e ininterrupta avaliação de cada segmento interessado. Verificação que passou despercebida da autoridade pública nos últimos tempos.
Daí a pergunta dos habitantes ofendidos: temos de sofrer as consequências ou podemos atribuir o prejuízo à municipalidade e cobrar dela? Tanto pelas ações omitidas como pela inépcia administrativa.
A primeira resposta pode parecer desalentadora. Embora não seja a única, a chuva, forte ou fraca, é um fenômeno da natureza. Assim, estranha à responsabilidade dos homens e à punibilidade deles e de seus agentes, o que complica a constatação do dano.
Nem por isso --eis o centro do problema-- sem isentar o poder público do cumprimento de seus deveres essenciais, quando o prejuízo se refira à vida, à saúde e aos bens dos cidadãos. À água, portanto.
O dado mais evidente durante as chuvas foi o de que o município --nesta e em outras administrações-- foi omisso em prever, situar e evitar danos mais graves, até na derrubada de árvores.
Nesses casos, todo direito se resume a uma condição essencial: cabe ao poder público impedir o agravamento de efeitos danosos da natureza. Garantir a limpeza de bueiros, sarjetas e valetas. Preservar sistemas de escoamento de superfície ou subterrâneo essenciais. Cessar a omissão que dura anos.
Cabe ao município o dever de aparar e limpar as árvores dos logradouros públicos, verificando o peso das águas, a força do vento. Enfim, preservando sua conservação e firmeza. Quando o escoamento não é da responsabilidade exclusiva do município, este deve denunciar efeitos que ultrapassem sua responsabilidade direta e reclamar a participação de outros órgãos públicos que possam contribuir para o bem da população atingida.
Em suma, as responsabilidades no controle dos efeitos da natureza incluem a atuação do poder constituído. Este é o exclusivo atuador do benefício do povo, em tudo quanto se refira à água. É a lei da vida, mais importante que a lei escrita.