Adriana Facina
Crianças podem se apresentar em bailes funk?
SIM
Moralizar os pobres
O que se observa na sociedade brasileira é um desejo amplamente difundido de moralizar os pobres. Modos de vida, manifestações culturais, fazeres artísticos e formas de sociabilidade populares são permanentemente estigmatizados e até mesmo criminalizados.
Crianças pobres, negras, que moram nas periferias brasileiras crescem sem creches ou escolas públicas de qualidade. Desde pequenas, essas crianças compartilham de uma cultura de sobrevivência que transforma dor em arte.
Elas estão nos terreiros, soltando pipas nas lajes, nas quadras das escolas de samba e nos bailes funk. Os pais não contam com babás e têm de levar os filhos para seus divertimentos --necessário para alimentar alma e corpo para rotinas de trabalho estafantes, com muitas horas perdidas nos deficientes transportes públicos.
Nesse contexto, o funk, assim como outras formas de diversão e lazer, pode representar também esperança. Possibilidade concreta de mudar de vida, de sonhar com reconhecimento, com a vida farta que todos queremos.
Muitos dos que se escandalizam com as performances dos MCs crianças apoiam entusiasticamente a redução da maioridade penal, a despeito de a Unesco estimar em apenas 1% os homicídios cometidos por menores de idade no Brasil.
Essa preocupação tão intensa com a "sexualização" das crianças não deveria vir acompanhada de medidas protetivas gerais e de valorização da vida dos pequenos?
"Primeiro a barriga, depois a moral." É com essa frase que o poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) criticava a moral burguesa que busca universalizar critérios de julgamento das condutas humanas como se todos vivêssemos realidades iguais.
Dizendo de outra maneira, para que todos nós pudéssemos ter nosso comportamento em sociedade avaliado pelos mesmos parâmetros teria de haver igualdade social (e não somente jurídica ou formal).
Radicalizando ainda mais, Brecht defende que em situação de escassez, material ou de direitos, não há moralidade possível. A moral depende, portanto, de condições de vida dignas, já que a precariedade é a maior imoralidade de todas.
Essas crianças, no entanto, têm contato com a morte violenta desde muito cedo. Pequenas ainda assumem tarefas como cuidar de irmãos, do lar e mesmo ajudar seus pais em trabalhos variados para garantir a sobrevivência da família.
Os olhos dessas crianças envelhecem mais cedo que seus corpos, pois elas vêm e vivem coisas que nenhuma criança deveria ver e viver. Elas são alvo e podem morrer com um tiro na cabeça, como aconteceu há poucas semanas com o pequeno Eduardo, no Complexo do Alemão.
Ao que tudo indica, o tiro partiu da polícia e, infelizmente, não foi o único nem será o último tiro dado pelo Estado brasileiro em crianças faveladas. Só em 2012 foram mais de 30 mil jovens assassinados no Brasil, de acordo com a Anistia Internacional. Quase todos eram pobres e, em sua maioria, negros.
Não podemos esquecer, por fim, da farta contribuição midiática para a exposição do sexo e do corpo feminino como mercadorias, disponíveis para todas as idades, nos comerciais, publicações e atrações televisivas variadas.
Se estamos de fato preocupados com nossas crianças, e não apenas repetindo velhos preconceitos gerados na casa-grande, temos de ampliar sensivelmente nosso escopo de indignação.
Se para cada criança violada em seus direitos batêssemos uma panela, nosso batidão seria capaz de produzir o maior e mais ensurdecedor baile funk do mundo.