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Vladimir Safatle

Pollock

O centenário de nascimento de Jackson Pollock passou praticamente em silêncio. Um dos maiores pintores do século 20, ele foi um dos responsáveis por colocar as artes visuais nos EUA em um patamar até então nunca alcançado.

Muito já se falou sobre a maneira através da qual a arte norte-americana do pós-Guerra, em especial o expressionismo abstrato, teria sido inflada por interesses político-econômicos e, assim, catapultada para o centro do debate estético mundial. Mas tais discussões passam ao largo de uma questão maior: de onde vem a perenidade de pintores como Pollock, De Kooning, Rothko, de onde vem sua posição de referência para compreendermos os desdobramentos das artes dos últimos 60 anos?

Não é sem interesse lembrar como Pollock radicalizava uma procura fundamental que guiara boa parte da arte moderna até então: a procura pela autonomia da forma.

A arte moderna procurava tomar distância crítica dos modos de organização que foram naturalizados no interior da vida social. Problemas de perspectiva, jogos de claro-escuro, figuração, campos de cores não são só questões técnicas ligadas à representação pictórica. São dispositivos fundamentais de ordenamento do espaço e da visibilidade.

Neste sentido, eles são modos de definição sobre o que entendemos por ordem, identidade, semelhança, presença. Por isso, criticar tais ideias naturalizadas é um procedimento decisivo na constituição de novas formas de vida.

Digamos que a arte moderna procurou fazer isso por meio da afirmação da autonomia da forma, do retorno da pintura à tematização de seus próprios meios, de sua própria gramática. Falar de si mesma era uma astúcia da arte na sua procura por abrir espaço para o advento de uma outra forma de falar do mundo.

Foi com Pollock que esse retorno da arte sobre si mesma alcançou um elemento tão fundamental quanto esquecido: o gesto. A tematização direta da gestualidade tinha a força de colocar em cena algo que sempre ficara fora da tela.

Se Velázquez, em seu famoso quadro "As Meninas", trouxera para o centro da tela a figura mesma do pintor e de seu olhar, Pollock radicalizava tal movimento ao colocar em cena não mais o olhar que organiza o campo do visível, mas o gesto que transforma o espaço pictórico no desdobrar infinito da pulsação larvar do que é anterior a toda e qualquer gramática. Nunca a pintura tinha ido tão claramente em direção ao fundamento de toda significação.

Essa força inaudita da pintura de Pollock era o primeiro passo para a recuperação de uma "expressão" que se descolara radicalmente de toda codificação prévia de afetos. Era a expressão de uma autonomia sobre a qual ainda sabemos muito pouco.

VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.

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