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Carlos Heitor Cony

A vingança da memória

RIO DE JANEIRO - O técnico trabalhava desde a manhã no velho computador, um 286, paquiderme eletrônico já naquela época.

Viera recomendado, era um entendido em informática. O governo brasileiro decretara a reserva de mercado para o mundo digital e, durante anos, fora difícil ter e manter bons equipamentos.

Somente por contrabando obtinham-se peças de reposição e aplicativos desenvolvidos. Mesmo assim, ele teimava em recuperar a memória. Ouvira dizer que nada se perde dentro do mundo eletrônico, seja qual for o programa instalado. A questão é saber acessar, perseguir a trilha dos arquivos deletados -tarefa impossível para ele. Faltavam-lhe competência e paciência.

Ao final da manhã, o rapaz desanimou. "Impossível o que o senhor quer." Pagou ao técnico o preço da visita, levou-o até a porta e voltou a olhar o monitor.

Muda, apagada, a tela cor de chumbo o intrigava. Tinha certeza de que, naquela manhã, ligara o equipamento e recebera uma foto, enviada não sabia por quem: a família inteira, inclusive ele, reunida na casa da rua Redentor, o avô no cimo da pirâmide formada por todos, amontoados nos degraus da escada que levava à varanda. Estavam lá, aqueles mortos todos. Gente demais.

Era raro e difícil enviar fotos pela internet, o processo de escanear tornara-se privilégio de universidades, das Forças Armadas. Tentara localizar o remetente, encontrara um endereço coletivo -impossível para um iniciante naquele mundo de gadgets descobrir quem lhe mandara aquilo.

Ou teria sido alucinação? Não existira foto alguma. Talvez fosse isso mesmo. A foto não estava na telinha, dentro do computador. Acessara a tela da memória e vira aquela gente toda, toda aquela gente viva, com a cara descorada dos mortos.

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