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Mauricio Antonio Ribeiro Lopes

E la nave va, mas para onde?

Após dois anos na rua, a pessoa fica praticamente irresgatável. Não adianta tentar depositá-la no albergue. E se ela não quiser ir a ele? Remoção compulsória?

Em "E la nave va", Fellini lega-nos uma cena de moldar a alma. O duelo entre os cantores de ópera e os carvoeiros do transatlântico.

A cada récita mais e mais aplausos e "la nave fermata, immobile" -o navio parado, imóvel. Os doutores Zanchin e Rehder ("Viver na rua não é viver em liberdade", em 4/7) parecem querer o mesmo.

Não o mesmo de Fellini nem o da nave, mas o dos tenores. Aplausos. Emprestar as suas vozes para fazer coro ao que imaginam que o povo em situação de rua quer cantar é impor a sua partitura sem ouvir deles nenhuma nota.

A complexa multiplicidade de fatores que leva uma pessoa à situação de rua não pode ser explicada nas poucas linhas desta coluna.

Engana-se quem pensa que São Paulo tem um problema relacionado aos moradores de rua. Tem 13.666 problemas, segundo o censo da Fipe de 2010). Desconsiderar a individualidade de cada uma das situações, seja pela política pública ou pela iniciativa privada, é o caminho mais curto para a inutilidade de qualquer proposta ou ineficiência de qualquer atendimento.

Cada homem, mulher, criança ou adolescente foi levado à rua por uma razão distinta. Só há possibilidade de inclusão diante dessa compreensão e emprego de esforços, recursos e ideias novas para não padronizar atendimentos. Não há solução total e nem deve haver prática totalitária.

Não é porque sempre os acompanharam "o não, o nada, o nunca" que se tornaram qualquer um e, portanto, qualquer coisa basta.

Depois de dois anos em situação de rua, são praticamente irresgatáveis pelos métodos já experimentados as pessoas que os doutores querem ver depositadas em albergues.

Se os albergues podem ser um passo (não discordo, em tese), será que ao menos a direção está certa para todos? Há diversos prédios vazios próximos à Faculdade de Direito da USP -um deles, inclusive, desapropriado para moradia estudantil. Será que todas as pessoas que estão no largo prefeririam um apartamento em vez das calçadas?

Não, por dezenas de motivos. Desconhecê-los não é tão perigoso quanto ignorá-los.

As tendas de atendimento formam um oásis no deserto social da atual administração e o Ministério Público sabe reconhecer isso. Já pediu à Secretaria Municipal de Assistência Social que providenciasse uma na região do largo de São Francisco. Com certeza o apoio não será unânime, mais uma vez.

O artigo dos doutores Zanchin e Rehder apresenta a ideia de que ninguém prefere viver na rua se houver equipamentos disponíveis. Isso não é verdade.

Todos os que militam com esse problema um dia pensaram assim. Mas há situações em que se prefere a rua a qualquer outra alternativa. E nesses casos o que será feito, remoção ou internação compulsória? Levá-los de um lugar a outro pelas polícias e guardas, impedindo-os de permanecer no espaço público?

Não posso deixar de sentir pena de quem considera a insanidade mental uma válvula de escape (como se fosse facultativo tornar-se ou não doente) ou de quem acha que a jaula é moral e não econômica.

Os doutores terminam o artigo cobrando o meu projeto. O projeto não pode ser meu. Urge que sejam projetos de 13.666 pessoas.

Saudações populares e abraços fraternais.

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