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Um sonhador
MILTON HATOUM
No céu avermelhado se
apagou a última estrela.
Ao mesmo tempo, uma
forma estranha riscou o
horizonte. Era um voador
bicudo, que foi atraído
para as trevas da mata
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Aprendi a navegar no escuro antes
de ler e escrever. Meu pai me ensinou a remar e a encontrar canal em época de vazante. Isso num tempo em que
havia estações. Em setembro, os rios ficaram tão rasos que os peixes foram
aprisionados em lagos que nunca foram
lagos. Mortos. E um cheiro de cinzas no
ar... Meus pais não viram esse céu de
ferrugem que esconde o sol. Velhos,
nem falavam mais no futuro... Agora
aparecem juntos e enlaçados, assombrados que nem fantasmas. Dizem que
no Sul os rios morreram há muito tempo, e que há guerra e flagelos nas grandes cidades. Por aqui, de qualquer coisa
se morre, e até malária enterra crianças.
Violência, doenças: quem pode desmentir seu próprio sofrimento?
Do Sul e da outra metade do país tenho notícias por umas moças que trazem palavras para o nosso povoado. Há
poucos anos elas chegaram com caixas
de livros e começaram a contar histórias
para as crianças. Lembro que na nossa
infância os mais velhos também contavam muitas histórias, mas desde que o
último avô morreu, um silêncio misterioso fechou a boca de várias gerações.
As moças foram embora com a promessa de que voltariam. Os mais jovens
duvidaram, mas elas reapareceram que
nem vaga-lumes: de surpresa e piscando pontos de luz na escuridão. Nos meses de seca e escassez, quando as margens se confundiam com o leito do rio,
os livros eram lidos em voz alta. As palavras não curam, mas são uma trégua no
desamparo, melodia na solidão. Agora
as crianças sonham as histórias que ouviram ou contam sonhos com as palavras que aprenderam a ler.
Lembrei das moças vaga-lumes porque ontem, dia da República, quis ser o
primeiro a votar. Atravessava o estirão
do Diabo à vara e a remo, e de repente
uma voz surgiu na curva do riozinho da
Liberdade, onde fica a seção eleitoral. A
voz fria e convincente disse: "Não
adianta votar... A decepção é maior do
que a esperança".
Procurei em vão a origem da voz. Nas
margens do riozinho a altura das palmeiras anunciava o amanhecer. No céu
avermelhado apagou-se a última estrela. Quase ao mesmo tempo uma forma
estranha riscou o horizonte. Era um
voador bicudo, e grande demais para
ser um morcego. Alcançou um descampado, foi atraído para as trevas da mata
e se perdeu por lá. Uns animais guincharam e soltaram grunhidos estranhos. Ao longe, uma fila de vultos maltrapilhos crescia diante da seção eleitoral. Eu não conseguia sair do estirão: a
canoa ficou cercada de peixes podres,
folhas e galhos carbonizados. Pelejava
para afastar esses dejetos, mas a curva
do rio parecia inalcançável. Aos poucos,
os grunhidos tornaram a ecoar no espaço, os sons aumentaram e pareciam urros de homens engalfinhados, como se
disputassem um banquete. Lutavam na
mata fechada: uma disputa das mais ferozes. Depois escutei umas gargalhadas
de festim e vi a fila de votantes avançar
devagar, com um andar de procissão.
De repente, o silêncio: tudo ficou paralisado. Um estrondo apagou a curva do
rio e outras visões.
O mesmo estrondo me acordou.
Era a primeira manhã do ano. Na memória do sonho ainda alternavam a
traição sem remorso e a esperança. E logo me veio à mente uma frase que nunca esqueci: o destino do sonhador é duvidar...
Milton Hatoum, 53, é escritor, autor dos romances "Relato de um Certo Oriente" (Prêmio Jabuti,
1990), "Dois Irmãos" (finalista do Jabuti, 2000) e
"Cinzas do Norte" (Grande Prêmio da Crítica -APCA, 2005).
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