São Paulo, segunda-feira, 01 de janeiro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Extermínio a crédito

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Com a crescente convicção da ameaça que representa o aquecimento global, talvez seja inevitável criar um novo capítulo na jurisprudência

AINDA HOJE, mesmo aqueles que reconhecem a ameaça do efeito estufa se reconfortam, consciente ou inconscientemente, com a convicção de que só agentes externos seriam capazes de provocar a extinção da humanidade e da vida sobre a Terra. Essa crença foi consolidada por uma série de evidências colhidas nas últimas quatro décadas do século 20.
Conclui-se que somos vulneráveis apenas a forças provenientes do espaço. Conseqüentemente, o aquecimento global, antropogênico, não pode ser uma ameaça concreta.
Tudo começa na década de 60, com a brilhante hipótese de Walter Alvarez de que um corpo celeste de dimensões apreciáveis teria colidido com a Terra e provocado a famosa extinção dos grandes sáurios, ocorrida ao final do Cretáceo (há 65 milhões de anos). A descoberta de uma cratera em Yucatán, México, e a subseqüente descoberta de camadas de rocha contemporâneas a essa catástrofe com elevado teor de trítio, elemento raro na Terra, mas comum em asteróides, consolidaram o modelo.
Seguiram-se argumentos e evidências a favor desse modelo para explicar outros extermínios. Entre as cinco grandes catástrofes dos últimos 500 milhões de anos, para quatro se encontram indícios de que a causa seria o impacto de um asteróide com a Terra ou, eventualmente, uma erupção vulcânica de grandes proporções.
Descartavam-se, assim, as tradicionais hipóteses de esgotamento de recursos naturais, de pragas de competição inter e intra-espécies, enfim, de qualquer tipo de causa que pudesse ser evitada, amenizada ou postergada pela ação humana. O pano de fundo do pensamento do cientista fica assim impregnado por um ceticismo fatalista que o paralisa.
Mas eis que novas técnicas da paleontologia, em conjunto com novas informações, promovem hipóteses baseadas em mecanismos de variação lenta. As elevações da densidade de dióxido de carbono deixam de ser conseqüência de eventos que provocaram as extinções históricas e passam a ser as causas primordiais.
O cataclisma que se aproxima, sendo uma ocorrência antropogênica, seria evitável, a princípio. Por outro lado, os aumentos da densidade de dióxido de carbono do passado ocorreram lentamente, em dezenas de milhões de anos, enquanto essa, devido à combustão de fósseis, se fará em centenas de anos. Se, no passado, não houve tempo para que as espécies se adaptassem, podemos imaginar a hecatombe que se avizinha.
Desde o início da Revolução Industrial, a densidade de dióxido de carbono cresceu de 270 partes por milhão (ppm) para 385 ppm. Ao ritmo atual de emissão, antes do fim do próximo século, se atingirá a mesma densidade de dióxido de carbono na atmosfera (1.000 ppm) que aquela que desencadeou o extermínio do Paleoceno Termal, há 53 milhões de anos.
Esse período de sobrevida da humanidade, quase 200 anos, não obstante, parece suficientemente extenso para que o homem, com seu imenso senso de onipotência e característica irresponsabilidade em relação a sua descendência, continue dormindo em berço esplêndido.
Em resumo, as condições adversas que ameaçam hoje a sobrevivência do homem e das demais espécies podem ser revertidas -ou, pelo menos, amenizadas-, pois são engendradas pelo próprio homem. A convicção de que a nossa sobrevivência não é determinada por acidentes cósmicos nos sobrecarrega de responsabilidade.
Se estamos convencidos de que, a continuarmos a emitir CO2, comprometeremos a sobrevivência do homem, não podemos deixar de examinar a questão sob o aspecto jurídico. A população da Terra deve chegar a 10 bilhões de indivíduos que serão exterminados até o final do próximo século por ações nossas atuais.
Consideremos um exemplo. O carbono contido em toda a fitomassa (aérea e subterrânea) da Amazônia é equivalente a todo o petróleo já queimado e ainda por extrair. A continuidade, ao ritmo deste último decênio, da prática de queimadas para expansão da cultura da soja ou criação de gado e a atuação de madeireiras deverão suprimir a floresta amazônica em pouco mais de 50 anos. A correspondente quantidade de CO2 acumulada na atmosfera equivaleria a cerca de 1 bilhão de humanos exterminados.
Se eu enveneno hoje um indivíduo que vai morrer daqui a dez anos como conseqüência inequívoca do envenenamento, serei condenado por homicídio (ou, pelo menos, por tentativa).
Pois bem, com a crescente convicção da ameaça que o aquecimento global significa para a sobrevivência da humanidade, talvez seja inevitável inaugurar um novo capítulo da jurisprudência, a saber, "homicídio a crédito", pois, para cada km2 de mata arrasada na Amazônia, 200 de nossos descendentes serão exterminados até o fim do próximo século.


ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE , 75, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.

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