São Paulo, sexta-feira, 01 de janeiro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES


"Rephorma ortographica"

CÁSSIO SCHUBSKY


A gente passa 30 anos tentando decorar a regra de uso do hífen e, depois que consegue, pronto: muda tudo


FICO PENSANDO nos enormes benefícios que a reforma ortográfica trouxe para o povo brasileiro nesse primeiro ano de sua vigência ainda não obrigatória. Fico pensando, pensando... e não chego a conclusão nenhuma. Talvez se possa aludir ao fato de a supressão de alguns acentos implicar redução no gasto de tinta para impressão, o mesmo valendo para a retirada da letra C em muitas palavras da grafia portuguesa, como "contracto", "facto" etc. Ou quem sabe se possa festejar que leitores preguiçosos acorram às gramáticas e aos dicionários em busca das novas regras, aumentando, em decorrência disso, o conhecimento da língua portuguesa.
Dizem as bocas de Matildes que o português é uma língua viva, que se renova e se recicla. Acho que não é bem assim. Na verdade, nosso idioma é uma língua morta, que vai renascendo a cada passo. Um monte de palavras fica no limbo -abandonados vocábulos, perdidos nas páginas empoeiradas dos alfarrábios. E surgem expressões novas, que caem no gosto popular, a partir de certos círculos linguísticos, ganham a simpatia geral e morrem de cansaço, digo, de tanto uso. Depois, ressurgem de novo, para, ao cabo, voltar à tumba lexical. Enfim, para alguns, a língua é viva e renasce das cinzas. Para outros, ela é morta e renasce das cinzas. No fim das contas, tanto faz. Como tanto fez.
Vez por outra, aparece uma reforma ortográfica para agitar a vidinha monótona da língua -e infernizar a nossa. E há um ano estamos às voltas com mudanças que se anunciavam pequenas, mas são um salseiro para quem vive do ofício de escrever, revisar e editar. E os portugueses, que se têm mostrado os mais inteligentes da piada, pelo visto não estão nem "tchuns" para o acordo ortográfico, em um desprezo altivo.
A gente passa 30 anos tentando decorar regra de uso do hífen e, depois que consegue, pronto: muda tudo.
Acentuação, então, nem se fale.
Como em tudo na vida, há uma história por detrás das reformas e acordos ortográficos no Brasil. Na verdade, essa mania de mudar a língua vem de longe. Em 1907, tentou-se uma primeira alteração do português no país.
Uma reforma fonética, digamos, de iniciativa do imortal Medeiros e Albuquerque. O que ele pretendia era aproximar a língua escrita da língua falada. E propunha nova grafia para palavras, como "ezemplo" ou "marjem". Consumiram-se os acadêmicos em debates intermináveis, e a famigerada (famijerada!) reforma -benza Deus!- não "pegou". Quer dizer, mais do que nunca, a mudança ortográfica nasceu como letra morta.
Muda daqui, mexe dali, vieram outras tentativas de reforma, consolidadas em 1971. Pois bem. Sou daqueles alfabetizados em meio às mudanças ortográficas significativas do início da década de 1970. Um sufoco danado começar a ler enfrentando a ortografia antiga, que já não valia, mas continuava impressa em toda a bibliografia disponível.
Fala sério! Por que não aplicar à língua portuguesa regras imutáveis, como as da matemática, santo Deus? Imagine só se mais com mais começasse a dar menos. Ou menos com menos desse menos. Seria o fim do mundo se a ordem dos fatores alterasse o produto. Bom, melhor não dar ideia, ou logo se reúne uma assembleia num boteco aqui da Pompeia... e, não bastasse a reforma ortográfica, pinta logo uma reforma matemática.
Ou física, sei lá.
Enquanto isso, o seu corretor ortográfico vai ficar mudando ideia para "idéia" -numa nostalgia que dá dó...
E você vai continuar não sabendo direito se deve escrever Ruy Barbosa e Euclydes da Cunha, agora que Y, K e W foram reabilitados. Pois há uma regra duvidosa, que nem sei se continua em vigor, de que, morre a pessoa, e a grafia muda -cai o Y, por exemplo, que vira I.
Seria interessante fazer uma pesquisa de opinião para saber se o povo aprova a querida (ou temida) reforma. Alguém duvida do resultado? Aposto que a próxima reforma irá incorporar a linguagem da internet, que logo sai da web para dominar os livros, os contratos, as bulas de remédio e as legendas dos filmes estrangeiros. "Vc naum ker" acreditar? "Blz".
Pague pra ver. Aliás, a supressão de acentos na linguagem virtual já é, de certo modo, adequação à novíssima reforma ortográfica. E a abreviação geral das palavras, uma atitude sustentável, de economia global. Talvez um antídoto contra essa abreviação reformista internáutica seja promover uma reforma definitiva. A mãe de todas as reformas, aproveitando o que de bom há em cada uma delas, contemplando os mais antigos, os de meia-idade, a juventude e os pimpolhos. Uma "rephorma ortographica" que "vc tb" vai aprovar. Aliás, por que não fazer um referendo popular para os usuários da língua se manifestarem?!


CÁSSIO SCHUBSKY, 44, editor e historiador, é organizador do livro "Castro Alves e seu Tempo", de Euclides da Cunha (Editora Lettera.doc e Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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