São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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Heróis do Estado de Direito


PAULO SÉRGIO PINHEIRO


[Os fiscais do Trabalho e o motorista assassinados] são verdadeiros heróis da defesa do Estado de Direito


Se houvesse em Belo Horizonte, como há em Genebra, o cemitério dos Reis, onde estão Jorge Luiz Borges e o nosso Sérgio Vieira de Mello, era lá que deveriam ser enterrados os corpos dos três fiscais do Trabalho e do motorista deles covardemente assassinados. Suas famílias, filhos e mulheres devem ser amparados pelo governo federal. O chefe de fiscalização da Delegacia Regional do Trabalho, Nelson José da Silva, seus colegas Eratóstenes de Almeida e João Batista Soares Lage e o motorista Aílton Pereira de Oliveira são verdadeiros heróis da defesa do Estado de Direito. Muito bem fizeram o ministro do Trabalho e o secretário especial dos Direitos Humanos, ministro Nilmário Miranda, de terem se deslocado imediatamente para o lugar do crime. Esperemos que a força-tarefa identifique logo os assassinos e seus mandantes.
Se apenas uma iniciativa do governo Fernando Henrique Cardoso devesse ser lembrada na defesa dos direitos humanos, essa seria o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf) e as equipes móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho. Antes nunca existira uma política federal de repressão ao trabalho escravo. A conivência dos fazendeiros escravocratas em cada Estado era (e muitas vezes ainda é) tamanha que as equipes de fiscalização saíam de Brasília de surpresa, para que maus delegados locais do Ministério do Trabalho (muitas vezes nomeados por injunções de política local) não avisassem antes esses criminosos. Fazendeiros com trabalhadores escravos, os "gatos" que os recrutam, seus paus-mandados e suas milícias fazem a lei, de Minas ao Pará. Somente graças ao Gertraf milhares de escravos foram libertados.
Essas equipes corajosíssimas, com a participação de dedicados policiais federais, grande participação de advogadas mulheres, assumem riscos enormes, como se viu em Minas, ao invadirem fazendas para liberar os trabalhadores escravos. Esses auditores, advogados, procuradores do Trabalho e policiais são combatentes da linha de frente (e de fogo) pelos direitos civis.
Nada melhor confirma a qualidade do Gertraf como autêntica política de Estado que o fato de o governo Luiz Inácio Lula da Silva ter mantido e fortalecido o grupo e as equipes de fiscalização móveis, citados como exemplo de boas práticas pela Organização Internacional do Trabalho. Logo no começo do governo Lula foi lançado um valoroso programa de combate ao trabalho escravo. Em termos de defesa de direitos civis no Estado democrático, com a alternância política, não há ruptura, mas continuidade e consolidação.
Esse crime bárbaro serve como demonstração dolorosa e inesperada da defesa do projeto que atribui competência federal para investigar, processar e julgar graves violações de direitos humanos. Em todo o país há mais de 1.200 casos de homicídios em conflitos rurais, e apenas uma dúzia deles foi processado. Os crimes de lesões graves por policiais, em todos os Estados, simplesmente prescrevem, ficando seus autores impunes. Apesar da transferência dos homicídios dolosos para a competência da Justiça civil, os policiais militares criminosos que assassinaram 111 detentos continuam impunes mais de uma década depois. Os crimes de homicídio que resultam em processo e condenação dos culpados representam uma minoria ínfima.
As centenas de execuções sumárias por maus policiais militares no Rio de Janeiro e em São Paulo passam longos anos impunes graças às investigações iniciais continuarem a ser feitas, 15 anos após a Constituição democrática, por inquéritos policiais militares amadorísticos e ineficazes.
Falta empenho das instituições em quase todos os Estados para implementar as obrigações que o Executivo assumiu e o Congresso Nacional ratificou. As unidades da federação simplesmente se lixam para o fato de o presidente FHC ou o presidente Lula terem de responder por crimes que o governo federal não comete. Governo federal que habitualmente não tortura, não seqüestra e não mata (nos dois últimos anos houve dois casos de tortura e morte em que estiveram envolvidos agentes federais). Essas violações ocorrem maciçamente sob a responsabilidade dos governos estaduais, citados em vários casos sendo processados na estrutura da ONU.
Muitas vozes desinformadas já se levantam clamando por atentado à autonomia dos Estados. Tem carradas de razão o ministro Nilmário Miranda ao afirmar que "o que coloca em xeque a autonomia dos Estados é o acobertamento de crimes graves praticados por agentes públicos". A pesquisa acadêmica tem mostrado a leniência, quando não impunidade, com que são contemplados os crimes comuns perpetrados por agentes e autoridades públicas.
Quem paga a omissão das instituições dos Estados em processar e julgar esses criminosos é o governo federal. E absolutamente não cola que o Brasil se escude no fato de termos um sistema federativo. O que se espera é que os senhores senadores não se tornem coniventes com a impunidade de criminosos e insensíveis ao lamento das vítimas e ao clamor de seus familiares, votando logo o projeto de lei que está nas suas mãos.


Paulo Sérgio Pinheiro, 60, é expert independente da ONU para violência contra as crianças e pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Foi secretário de Estado dos Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso.


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