|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Os atentados ocorridos no Rio são um sinal de abalo no crime organizado?
NÃO
A hora da virada
ALBA ZALUAR
A violência urbana, desde os
anos 80 apresentada como resultado apenas da ação de pequenos e médios delinquentes que habitavam as regiões mais pobres e as favelas da cidade,
cristalizou os estereótipos na direita e
na esquerda. Na direita, porque seriam
os únicos culpados a serem encarcerados; na esquerda, por serem vítimas de
um sistema iníquo que fazia deles homens violentos e predadores.
Não se fazia a conexão deste inusitado
crescimento da violência entre os jovens
pobres com as profundas transformações nas formas de criminalidade que se
organizaram em torno do tráfico de
drogas -em especial da cocaína- e do
contrabando de armas, dois negócios
extremamente lucrativos, que passaram
a mobilizar as várias máfias transnacionais com seus agentes pertencentes a
classes sociais superiores.
Não se falava do que representavam
tais negócios no funcionamento de um
mercado livre de quaisquer limites institucionais ou morais, com que nem os
mais liberais sonharam, justamente por
transacionar mercadorias ilegais. Esse
mercado tende a ser muito lucrativo para quem está estrategicamente posicionado em suas redes de contatos que
atravessam fronteiras entre os Estados
brasileiros e as nações do mundo: comerciantes, empresários e fazendeiros
do noroeste do país e Fernandinho Beira-Mar, entre outros.
Com tanto lucro, fica fácil corromper
policiais e promover ações cujo único
objetivo é provocar o terror em quem
pode vir a se opor às ações violentas necessárias ao negócio. Daí a facilidade
com que armas e drogas chegam a favelas e bairros populares. Daí a capacidade de mobilizar jovens moradores dos
locais militarmente controlados pelos
comandos para participar das transações comerciais e das ações terroristas.
A recusa em aceitar que novas formas
de associação entre criminosos mudaram o cenário não só da criminalidade,
mas também da economia e da política
no país, atrasou em muito a possibilidade de reverter o processo. Deixou livre o
caminho para o progressivo desmantelamento nos bairros pobres do que havia de vida associativa. Deixou espalhar-se, entre alguns jovens pobres, um
etos guerreiro que os tornou insensíveis
ao sofrimento alheio e orgulhosos de infligirem violações ao corpo de seus rivais negros, pardos e pobres como eles,
agora vistos como inimigos mortais. E,
ao final, permitiu abalar a civilidade.
Infelizmente esse etos guerreiro é hoje
estimulado por movimentos equivocados, que se inspiram na violência secular das gangues americanas, fenômeno
mais branco do que negro, mas confundido com a "cultura da rua", "negra",
"pobre", "excluída" e "da periferia".
Nesse contexto de crescimento do crime organizado, uma aventura fatal para
os assim nomeados.
Pois, além do poder corruptor, cá como acolá, o crime organizado guarda
muito de sociedade secreta, com seus rituais iniciáticos. Por isso mesmo nega a
cultura generalizada, tradicional ou
não; o iniciando torna-se novo ser, tábula rasa para receber o conhecimento e
a ordem do grupo. A "omertà" é um dos
lados da moeda, o outro lado é a subordinação à vontade da organização, ou
seja, a "umiltà", mesmo que para cometer os atos mais cruéis contra inimigos,
vizinhos, parentes, amigos de ontem.
Como nas organizações maçônicas,
no crime organizado o delator é chamado de infame e a organização está sempre pronta a matar ou denunciar os seus
inimigos anônima ou secretamente à
polícia. Fazem regulamentos e estatutos, além de dispor de autoridades e tribunais que decidem e punem sem clemência. Assim fez o Comando Vermelho, desde a sua fundação, no presídio
da Ilha Grande, onde foram reunidos os
criminosos (vindos de todo o Brasil; cariocas apenas 10%) inclusos na Lei de
Segurança Nacional na década de 70.
A publicação recente de documento
com o regulamento do comando, bem
como a aplicação, desde a sua fundação,
da pena máxima para quem ouse denunciar ou prejudicar os negócios das
quadrilhas que controlam favelas e bairros pobres de várias cidades, aponta na
mesma direção. Desde então o crime
organizado só tem feito crescer e tornar-se cada vez mais ousado no Brasil.
Na Itália, a ruptura só aconteceu em
1979, quando a máfia tornou-se terrorista, assassinando juízes, políticos honestos, políticos corruptos, rompendo
com seu passado prudente de mimetismo e acordos com o poder constituído.
E aqui também a cegueira provocada
por um poder localizado, mas irrefreável, e a bravata que se tornou um hábito
dos "donos" de boca-de-fumo e de
morros, que mandam e desmandam
em áreas periféricas, têm feito traficantes deixarem os limites protegidos pelos
arranjos de poder para invadir o espaço
urbano até há pouco respeitado.
Hoje sabemos que atividades do PCC
e dos comandos Vermelho e Terceiro já
incorporaram o terrorismo contra a população inteira das duas maiores e mais
importantes cidades brasileiras, culminado nos últimos dias no Rio. Está na
hora da virada -nacional, integrada e
estratégica-, como ocorreu na Itália.
Alba Zaluar, antropóloga, livre-docente pela Unicamp, é professora titular de antropologia da
Uerj. Foi assessora de Segurança Participativa da
Prefeitura do Rio de Janeiro (2001-2002).
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Sim - Michel Misse: Uma ação irracional
Índice
|