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São Paulo, sábado, 01 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os atentados ocorridos no Rio são um sinal de abalo no crime organizado?

NÃO

A hora da virada

ALBA ZALUAR

A violência urbana, desde os anos 80 apresentada como resultado apenas da ação de pequenos e médios delinquentes que habitavam as regiões mais pobres e as favelas da cidade, cristalizou os estereótipos na direita e na esquerda. Na direita, porque seriam os únicos culpados a serem encarcerados; na esquerda, por serem vítimas de um sistema iníquo que fazia deles homens violentos e predadores.
Não se fazia a conexão deste inusitado crescimento da violência entre os jovens pobres com as profundas transformações nas formas de criminalidade que se organizaram em torno do tráfico de drogas -em especial da cocaína- e do contrabando de armas, dois negócios extremamente lucrativos, que passaram a mobilizar as várias máfias transnacionais com seus agentes pertencentes a classes sociais superiores.
Não se falava do que representavam tais negócios no funcionamento de um mercado livre de quaisquer limites institucionais ou morais, com que nem os mais liberais sonharam, justamente por transacionar mercadorias ilegais. Esse mercado tende a ser muito lucrativo para quem está estrategicamente posicionado em suas redes de contatos que atravessam fronteiras entre os Estados brasileiros e as nações do mundo: comerciantes, empresários e fazendeiros do noroeste do país e Fernandinho Beira-Mar, entre outros.
Com tanto lucro, fica fácil corromper policiais e promover ações cujo único objetivo é provocar o terror em quem pode vir a se opor às ações violentas necessárias ao negócio. Daí a facilidade com que armas e drogas chegam a favelas e bairros populares. Daí a capacidade de mobilizar jovens moradores dos locais militarmente controlados pelos comandos para participar das transações comerciais e das ações terroristas.
A recusa em aceitar que novas formas de associação entre criminosos mudaram o cenário não só da criminalidade, mas também da economia e da política no país, atrasou em muito a possibilidade de reverter o processo. Deixou livre o caminho para o progressivo desmantelamento nos bairros pobres do que havia de vida associativa. Deixou espalhar-se, entre alguns jovens pobres, um etos guerreiro que os tornou insensíveis ao sofrimento alheio e orgulhosos de infligirem violações ao corpo de seus rivais negros, pardos e pobres como eles, agora vistos como inimigos mortais. E, ao final, permitiu abalar a civilidade.
Infelizmente esse etos guerreiro é hoje estimulado por movimentos equivocados, que se inspiram na violência secular das gangues americanas, fenômeno mais branco do que negro, mas confundido com a "cultura da rua", "negra", "pobre", "excluída" e "da periferia". Nesse contexto de crescimento do crime organizado, uma aventura fatal para os assim nomeados.
Pois, além do poder corruptor, cá como acolá, o crime organizado guarda muito de sociedade secreta, com seus rituais iniciáticos. Por isso mesmo nega a cultura generalizada, tradicional ou não; o iniciando torna-se novo ser, tábula rasa para receber o conhecimento e a ordem do grupo. A "omertà" é um dos lados da moeda, o outro lado é a subordinação à vontade da organização, ou seja, a "umiltà", mesmo que para cometer os atos mais cruéis contra inimigos, vizinhos, parentes, amigos de ontem.
Como nas organizações maçônicas, no crime organizado o delator é chamado de infame e a organização está sempre pronta a matar ou denunciar os seus inimigos anônima ou secretamente à polícia. Fazem regulamentos e estatutos, além de dispor de autoridades e tribunais que decidem e punem sem clemência. Assim fez o Comando Vermelho, desde a sua fundação, no presídio da Ilha Grande, onde foram reunidos os criminosos (vindos de todo o Brasil; cariocas apenas 10%) inclusos na Lei de Segurança Nacional na década de 70.
A publicação recente de documento com o regulamento do comando, bem como a aplicação, desde a sua fundação, da pena máxima para quem ouse denunciar ou prejudicar os negócios das quadrilhas que controlam favelas e bairros pobres de várias cidades, aponta na mesma direção. Desde então o crime organizado só tem feito crescer e tornar-se cada vez mais ousado no Brasil.
Na Itália, a ruptura só aconteceu em 1979, quando a máfia tornou-se terrorista, assassinando juízes, políticos honestos, políticos corruptos, rompendo com seu passado prudente de mimetismo e acordos com o poder constituído. E aqui também a cegueira provocada por um poder localizado, mas irrefreável, e a bravata que se tornou um hábito dos "donos" de boca-de-fumo e de morros, que mandam e desmandam em áreas periféricas, têm feito traficantes deixarem os limites protegidos pelos arranjos de poder para invadir o espaço urbano até há pouco respeitado.
Hoje sabemos que atividades do PCC e dos comandos Vermelho e Terceiro já incorporaram o terrorismo contra a população inteira das duas maiores e mais importantes cidades brasileiras, culminado nos últimos dias no Rio. Está na hora da virada -nacional, integrada e estratégica-, como ocorreu na Itália.


Alba Zaluar, antropóloga, livre-docente pela Unicamp, é professora titular de antropologia da Uerj. Foi assessora de Segurança Participativa da Prefeitura do Rio de Janeiro (2001-2002).


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