São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Pobre não tem vez

SAULO RAMOS

No debate sobre súmula vinculante, temos assistido a um espetáculo danado de confuso. Gente que não entende nada de nada dando palpite. Ditadura do Supremo Tribunal, função legislativa para magistrados que não foram eleitos pelo povo e outras demagogias disparatadas. É preciso atentar para o benefício social e o avanço jurídico da súmula vinculante. Vou examinar apenas a do STF em questão constitucional.
Não é difícil entender que uma lei ou ato inconstitucional lesa direitos. A doutrina do mundo inteiro considera a lei inconstitucional como um nada jurídico, uma coisa nenhuma, nula e inexistente. Nosso sistema de controle constitucional dá ao juiz de qualquer instância o poder de declarar a inconstitucionalidade da lei no caso concreto submetido ao seu julgamento. Mas ao Supremo, além dessa mesma competência (chamada difusa), confere outra, chamada de abstrata: a de decretar a inconstitucionalidade em ação direta em que o réu é somente a lei. Na competência difusa, o STF comunica ao Senado que a lei seja suspensa. Velharia que não funciona mais. O Senado recebe a comunicação e não está nem aí.


É preciso atentar para o benefício social e o avanço jurídico da súmula vinculante


Na decretação de inconstitucionalidade da lei em ação direta também nada acontece. Fica-se na declaração. Se um juiz quiser seguir a decisão do Supremo, tudo bem. Se não quiser, o prejudicado que recorra. Apelação para o Tribunal de Justiça da capital do Estado, recurso especial para Brasília e, por último, recurso extraordinário para o STF. É fácil ir fazendo as contas do tempo (anos e anos) e do dinheiro gastos.
No meio dessas complicações, o povão nem sabe o que é recurso especial, recurso extraordinário, coisas para os advogados. Aqui entra, na história, um outro recurso, que o povo entende bem, mas não tem. O recurso financeiro. Sem esse recurso, o pobre não tem vez. Aplicada contra ele uma lei inconstitucional, se não tiver o rico dinheirinho para pagar a viagem do processo até Brasília, ele vai ter o nada jurídico, a coisa nenhuma, lesando seu direito pelo resto da vida, em razão de outra coisa para ele incompreensível: a coisa julgada.
Dizem que o juiz, a que chamam de natural, deve ter liberdade para decidir em razão das diferenças regionais muito acentuadas no imenso Brasil. Uai! Mas a Constituição não é uma só para todos os brasileiros? Que diferenças são essas, que farão a lei inconstitucional para uns e constitucional para outros?
No caso de inconstitucionalidade de lei, expressamente declarada pelo Supremo, vamos ser justos com os juízes: a maioria tem aplicado a decisão superior, mesmo porque não dá para dizer que os magistrados do mais alto tribunal estão sempre errados. É verdade que alguns não são lá essas coisas e dão seus tropeções. Podem até, em dado julgamento, constituir a maioria simples, ou absoluta, numa decisão da qual se arrependem para modificá-la mais tarde. Assim, convém distinguir efeito vinculante dos julgamentos do Supremo e súmula vinculante, que é outra coisa.
Se a reforma do Judiciário pretendesse dar efeito vinculante a todas os julgamentos do STF, não precisaríamos do Poder Judiciário. Bastaria vestir uma toga nos computadores. Mas não é isso. A adoção da súmula vinculante, com força subordinativa, ou seja, de obrigatória aplicação pelos juízes, foi concebida para ser editada depois de aprovada por dois terços dos ministros do STF, isto é, com oito votos, esperando-se que neste expressivo número não estejam todos errados. E mais: em outras matérias a súmula é editada depois de muitos casos iguais decididos, inclusive pelas instâncias inferiores, nas quais, na verdade, elas começam a nascer. Se decisão do Supremo não for para ser obedecida, é melhor fechar o tribunal.
Detalhe importante na situação atual: declarada, pelo Supremo, a inconstitucionalidade de uma lei (em geral sobre tributos cobrados aos cidadãos), os juízes aplicam-na e lá vêm os recursos do poder público, da União, dos Estados, dos municípios, sabendo que vão perder a causa, mas ganham tempo -e quanto! Daí os mais de 100 mil processos repetitivos que sobem todos os anos, posto que o poder público tem um entendimento diferente do processo judicial: empurrar com a barriga em favor do Tesouro, uma das maiores autoridades em chicanas nos tempos atuais. Também aí os pobres sofrem mais que os ricos, pois não têm como fazer seus processos andarem rapidamente. Ficam na fila. Mais uma fila!
Agora vamos ao aspecto técnico e, desculpem, científico da questão. O controle de constitucionalidade no Brasil tem uma característica profundamente cruel, além de tristemente ridícula. Permite, aos juízes e tribunais inferiores e à autoridade administrativa, a aplicação de lei inconstitucional, assim declarada pelo Supremo, e, uma vez aplicada, admite que transite em julgado por falta de recurso regulado no processo civil lei infraconstitucional, de hierarquia menor. A falta de recurso, ou recurso fora de prazo, faz incidir a proteção constitucional da coisa julgada sobre a inconstitucionalidade concretamente aplicada. Dá para digerir? Se a inconstitucionalidade é o mais fulminante dos defeitos das normas, como pode o homem simples do povo entender o trânsito em julgado, contra direito seu, de decisão que aplicou lei declarada inconstitucional, logo inexistente e nula?
A súmula vinculante vai resolver parte desses problemas. E poderá, no futuro, ser aperfeiçoada, permitindo que o santo juiz natural recuse sua aplicação fundamentadamente, mas com recurso obrigatório, chamado de ofício, para a jurisdição superior, até chegar ao Supremo, que poderá até alterar o direito sumulado, se entender que a rebeldia da sentença, mantida nos recursos, tem razões de ser.

José Saulo Pereira Ramos, 74, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


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