São Paulo, domingo, 01 de abril de 2007

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O rabino Sobel e o Brasil

JAIME PINSKY


Falta compaixão com um homem que deve estar com problemas e precisa de ajuda neste momento, ele que ajudou tanta gente


CONHECI O rabino Sobel no enterro de Vladimir Herzog, o Vlado. Assassinado em 1975 pelo regime militar depois de ter sido barbaramente torturado, o corpo do jornalista foi entregue à família com a informação de que teria se suicidado.
Uma foto do suposto auto-enforcamento foi entregue à imprensa. A farsa, como em tantos outros casos, era evidente. Mas aqui havia um detalhe. Como judeu, Vlado deveria ser enterrado em um cemitério judaico, e a tradição prescrevia um local separado para suicidas, por terem atentado contra a própria vida.
O então jovem rabino da CIP (Congregação Israelita Paulista), chegado havia pouco dos Estados Unidos, calculou e correu o risco. Determinou que o corpo não seria enterrado com os suicidas, pois suicida não era.
O enterro foi dramático: inconformismo da mãe, da esposa e dos filhos, algumas falas corajosas, fotógrafos e cineastas (sic) do governo militar registrando a presença dos "subversivos" na cerimônia.
Havia medo, mas a atitude daquele rabino deu coragem às dezenas de colegas e amigos do jornalista assassinado que se comprimiam em volta do caixão e que acompanharam, chorosos, mas conscientes do seu papel, a descida do corpo para dentro da cova no Cemitério Israelita do Butantã.
Todos, na sociedade e no governo, viram que o país já não suportava mais a intolerância política. Aquelas mesmas pessoas e mais milhares de outras acorreram ao serviço religioso ecumênico que seria realizado alguns dias depois na catedral da Sé, sob a responsabilidade de d. Paulo Evaristo Arns e do rabino Sobel, entre outros.
O Brasil não seria mais o mesmo. Atingido pelos acontecimentos, o rabino, então com pouco mais de 30 anos, soube se portar como um liberal americano de boa estirpe e como um líder religioso corajoso, tolerante e pleno de compaixão.
Ao longo de toda a sua longa permanência no Brasil, Henry I. Sobel continuou na mesma linha. Preocupado mais com a essência das coisas religiosas do que com sua aparência, ele sempre apostou no diálogo inter-religioso e tem sido um dos seus mentores, com atuação que não se circunscreveu às nossas fronteiras.
Também na política internacional sua posição tem sido de diálogo, inclusive no que se refere a um Estado nacional para os palestinos, em coexistência com Israel. Óbvio? Nem tanto para alguém que se tornou o mais importante líder religioso judaico e precisa conviver com setores mais ortodoxos e menos abertos.
De resto, pretensos líderes comunitários, com mais dinheiro do que talento, se sentiam ofuscados pelo rabino "pop" e, por muitas vezes, tentaram destituí-lo de suas funções. Até a semana passada, sem sucesso.
E agora que nós estamos na Páscoa judaica, o Pessach, deve-se lembrar que, para além, para bem além da figura pessoal (rosto grande, nariz forte, solidéu cor de vinho encimando cabelos cortados com estilo característico, sotaque forte), o rabino Sobel tem representado para a comunidade judaica e para a sociedade toda uma travessia: a passagem do judaísmo de gueto, da mentalidade paranóica, para um judaísmo mais universal, que se preocupa com o povo judeu no mundo, e não com o mundo contra o povo judeu.
Quando criança, meus pais me contavam que "pogrom" era palavra de origem russa que significava perseguição contra os judeus, oprimidos na Europa Oriental. Ao ver a polícia do então interventor Adhemar de Barros jogar seus cavalos contra os operários da "Sorocabana", corri assustado para casa para contar a meus pais sobre o "pogrom" que estava acontecendo perto de casa. Pouco interessava que os "judeus" não fossem judeus. Essa passagem, do tribal para o universal, Sobel realizou.
Não escrevo estas linhas como judeu religioso, que não sou, como não sou membro da comunidade que o contratou. Escrevo como historiador, incomodado com a falta de compaixão com um homem que, provavelmente, está com problemas e precisa de ajuda neste momento, ele que ajudou tanta gente. Afinal, ele nunca cometeu abuso sexual ou assaltou os cofres públicos... Enquanto outros buscavam pecados em todos os gestos humanos, Sobel sempre buscou compreendê-los.
Sem dúvida, o Brasil ficaria menor sem ele.

JAIME PINSKY , 67, historiador, doutor e livre-docente pela USP, é professor titular da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).


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