São Paulo, quarta-feira, 01 de abril de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Formação da opinião pública

DENIS LERRER ROSENFIELD


Vozes discordantes são consideradas inválidas, pois "defenderiam a indústria fumageira", não dando lugar à discussão sobre o mérito


RESTRIÇÕES crescentes à liberdade de escolha no Brasil colocam uma série de questões relativas à formação da opinião pública e aos consensos estabelecidos que são, em boa parte dos casos, de natureza ideológica e política, e não científica.
O caso dos fumantes passivos é um bom exemplo disso, na medida em que não há evidências científicas que sustentem o nexo causal entre o câncer de pulmão e os que estão expostos ao fumo alheio. Os estudos são extremamente inconclusivos a esse respeito, não podendo, portanto, respaldar uma política de saúde pública.
O livro de Geoffrey C. Kabat, "Hyping Health Risks. Environmental Hazards in Daily Life and the Science of Epidemiology" (Enganos públicos de riscos para a saúde. Riscos do meio ambiente na vida cotidiana e a ciência da epidemiologia), de 2008, é uma excelente contribuição para esse debate. Ele incide sobre uma discussão atual sobre a proibição de fumo em ambientes fechados e mesmo públicos, independentemente da separação entre fumantes e não fumantes, como se estes estivessem expostos aos mesmos riscos daqueles.
Fumantes e não fumantes devem ser preservados, cada um em suas escolhas, um não interferindo na do outro. Ambientes exclusivos em restaurantes e bares ou locais reservados para os que gostam de fumar são a melhor opção para os que prezam a liberdade de escolha. A campanha, porém, acaba ganhando tais contornos, com leis sendo discutidas em âmbitos federal e estadual, além de atos administrativos do Ministério da Saúde e seus órgãos, que se torna uma espécie de cruzada, em que a luz da razão é ofuscada e a crença dogmática ganha primazia.
O nó da questão reside na formação da opinião pública. Os formadores de opinião antitabagistas e os agentes públicos tornaram a sua campanha uma questão de ativismo político, recusando quaisquer opiniões que contrariem as suas crenças.
Antes de qualquer conclusão científica, estabelece-se um consenso do ponto de vista da opinião pública, toda posição contrária vindo a ser considerada uma espécie de anátema. A questão do fumo acabou se tornando uma espécie de pivô do ponto de vista ideológico, sustentando ações politicamente corretas que servem de base tanto para coibir a liberdade de escolha quanto para aumentar o poder de ingerência do Estado na vida privada e consolidar crenças sem bases científicas.
Estamos, no dizer de Kabat, diante de um novo macarthismo na ciência, produto de um consenso ideológico que termina por se impor sobre o consenso científico. Ele se traduz também por perseguições, silêncios e severas acusações contra os que não compartilham de suas crenças dogmáticas. Vozes discordantes são consideradas inválidas, pois "defenderiam a indústria fumageira", não dando lugar a uma discussão sobre o mérito, sobre a verdade. O maniqueísmo é total: trata-se de uma luta do bem contra o mal.
O que está em questão é a posição ideológica, e não o debate racional. Estamos diante de uma mentalidade autoritária que procura, de qualquer maneira, fazer avançar as suas propostas, tanto mais perigosa na medida em que se abriga sob o manto da ciência, do bem e do politicamente correto.
A opinião pública funciona como um jogo de espelhos, onde confluem percepções dos mais diferentes tipos, podendo ou não corresponder à verdade. No que diz respeito à incidência do câncer de pulmão em fumantes passivos, observamos como ilações meramente associativas, sem nexo causal, começam a ser tidas por verdadeiras, impulsionando agências governamentais a adotar uma determinada política.
O consenso científico é muito diferente do consenso público. Por exemplo, um fumante passivo, segundo distintos estudos, inalaria o equivalente a sete cigarros por ano, o que é absolutamente insignificante em termos de saúde pública.
Na verdade, estamos trabalhando com o que se pode considerar um paraconhecimento, um conjunto de crenças que passa a ser o discurso dominante, orientando políticas e o comportamento de cada um. Uma mera hipótese de trabalho torna-se a prova absoluta de um perigo real, existente, falseando, dessa maneira, as condições mesmas do trabalho científico.

DENIS LERRER ROSENFIELD, 58, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor da revista "Filosofia Política". É autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática, 1995), entre outros livros.


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