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TENDÊNCIAS/DEBATES
Menos leis, mais compostura
MARCO AURÉLIO DE MELLO
Diante dos acontecimentos que
recentemente permearam a agenda política nacional, tornou-se corriqueiro o comentário de que o Estado está em crise. Essa conclusão se mostra
parcial e pessimista, porquanto superdimensiona os aspectos negativos,
quando, na realidade, deveria sobressair o pleno funcionamento das instituições, aí incluindo o elevado nível de
uma mídia independente e extremamente vigilante, sem dúvida nenhuma
requisito e consequência, a um só tempo, do Estado democrático de Direito.
A população, outrora inerte por ignorância ou muitas vezes por conveniência, hoje se sente segura para reagir às
distorções notadas nos diversos segmentos da vida pública e se manifesta
de forma razoavelmente amadurecida.
O cidadão brasileiro, mais consciente,
não só observa os fatos, ainda que à distância, mas opina e pressiona, sobretudo porque os meios de comunicação
aproximaram a elite dirigente dos eleitores. E o veredicto vem de forma clara,
rápida, mostrando-se cada vez mais rigoroso frente às eventuais fragilidades e
deficiências na estrutura do Estado.
No Brasil de hoje, não há mais como
desprezar a força dos grupos de pressão,
resultado da crescente organização social e do avanço tecnológico, já que é
inegável o papel da internet na arregimentação e na divulgação do pensamento da camada formadora de opinião. Um número cada vez maior de diligentes cidadãos acompanha de perto a
atuação dos três Poderes da República,
que, a passos largos, ajustam-se ao austero figurino de moralidade e ética exigido pela nação, recaindo sobre o Judiciário a cobrança que soa como das
mais impacientes, pela antiguidade das
reclamações, direcionadas, na grande
maioria das vezes, à conhecida morosidade na tramitação dos feitos. Em respeito aos cidadãos brasileiros, partícipes da administração do Estado, cumpre analisar, com absoluta honestidade
de propósito, as causas que inviabilizam
o desfecho de uma ação em tempo razoável, sem abandonar a segurança jurídica, tão cara em uma sociedade que se
almeja democrática.
Não cabe aqui, de forma nenhuma, a
defesa da magistratura. Os juízes estão
no limiar de seus esforços, procurando
dar o melhor de si como servidores da
sociedade; desdobram-se na tentativa
de bem aproveitar todo o tempo disponível, vivendo um constante conflito no
desmedido empenho de conciliar celeridade, eficiência e consistência jurídica
nas decisões que proferem.
Descartada a responsabilidade dos
magistrados nesse quadro caótico, o
cerne do problema parece estar na desarrazoada avalancha de processos que
inundou o Judiciário nas últimas décadas, circunstância a que se soma o descompasso entre o número de habitantes
e de órgãos investidos no ofício de julgar. Qual a origem de tantos processos?
Bem, não é coincidência o fato de que
exatamente nesse mesmo período diversas foram as tentativas dos governantes para afastar o fator responsável
pelo maior desgaste político da época: a
escalada inflacionária. Respondia-se, a
cada insucesso, com outro pacote de
medidas miraculosas. Contam-se facilmente mais de uma dúzia de planos
econômicos anunciados com grande
pompa, produtos de conceitos e teorias
de forte apelo tecnocrático e sem quase
nenhuma orientação jurídica -os profissionais do direito pouca participação
tiveram e, quando assim não ocorreu,
abandonaram a independência técnica,
predicado inerente à atuação, buscando, de forma imprópria, o êxito da política em curso, e não a preservação da
coisa pública.
São dispensáveis outras
leis; imprescindíveis são
homens que as cumpram;
aí a palavra "crise" pode
desaparecer do cotidiano
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O fim passou a justificar os meios,
atropelando comezinhas noções, a
exemplo do que ocorreu em relação a situações devidamente constituídas, os
chamados direitos adquiridos. E como,
para usar uma pilhéria popular, a parte
mais sensível do ser humano é o bolso,
foram os tribunais que arcaram com os
custos de tanto desatino, encontrando
cortes judiciais do país, mesmo após
transcorridos muitos anos, às voltas
com os incêndios provocados por tais
malfadados planos.
Um exemplo esclarecedor deu-se há
pouco: o Supremo Tribunal Federal enfim dirimiu de maneira definitiva as
controvérsias relativas à correção dos
saldos das contas do FGTS advindas das
estrambólicas medidas engendradas
por equipes econômicas de plantão.
Perderam-se de vista quantos processos
passaram pelo Supremo sobre a questão, obstruindo a pauta de julgamento
para aqueles casos de envergadura mais
compatível com a Suprema Corte.
Parece razoável, portanto, concluir
que, diante da estabilidade da moeda,
domado o monstrengo inflacionário e
com o Plano Real vigente já por algum
tempo, a tendência seria a diminuição
do número de processos. Não obstante
a instabilidade monetária foi substituída por outra mais perniciosa: a normativa. E com um agravante: a proliferação
de diplomas legais decorre do uso abusivo de instrumental que tem força de
lei, a medida provisória. Abusivo até
porque à margem do texto da Carta Federal, ainda que tenha sido das mais claras a linguagem usada pelo constituinte.
Ora, se diante de ordenamento jurídico estável pairam dúvidas na interpretação de preceitos -sempre um ato de
vontade-, pode-se imaginar o que advém da edição sem limites de medidas
provisórias, de modo a transformar o
excepcional em corriqueiro, desatendendo, até mesmo, a delimitação constitucional relativa à área de atuação de
cada Poder.
É tempo de acurar o olhar para a necessidade de os membros dos três Poderes mostrarem-se como verdadeiros artífices na tarefa precípua de transformar
a Constituição em corpo vivo. E, para
tanto, são dispensáveis outras leis; ao
contrário, imprescindíveis são homens
que as cumpram, dirigentes que exerçam seus ofícios convictos de que o cidadão comum elege como parâmetro a
conduta das autoridades legitimamente
constituídas. Que a salutar mudança esperada pelos brasileiros inicie-se com
uma nova atitude do Estado que tudo
pode -legisla, executa as leis e julga a
aplicação destas. Que o faça homenageando e, mais do que isso, respeitando
a supremacia da Constituição que a todos, sem exceção, submete. No dia em
que isso acontecer, a palavra "crise" desaparecerá dos comentários rotineiros
ouvidos em cada esquina.
Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, 54, é
presidente do Supremo Tribunal Federal.
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