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TENDÊNCIAS/DEBATES
Universidade e violência
FRANCO LAJOLO
Eu me pergunto que lição de ética, democracia e lógica estamos ensinando na USP. A violência é incompatível com a universidade
A RECENTE notícia de que a
UNE (União Nacional dos Estudantes) prepara invasões orquestradas de prédios públicos vem
na esteira do farto noticiário sobre a
ocupação da reitoria da Universidade
de São Paulo, em que alguns estudantes dizem acreditar ser "um direito da
população pedir mudanças e ocupar
um prédio público". Trata-se de ordens diferentes de coisas. Evidentemente é direito da população pedir
mudanças, mas não decorre da legitimidade desse direito a legitimidade
da ocupação de prédios públicos.
Eu me pergunto que lição de ética,
de democracia e de lógica estamos, na
USP, ensinando a nossos estudantes.
Pela força que sempre representou
em momentos decisivos da história
brasileira o movimento estudantil
-do qual participamos muitos dos
que hoje são professores e dirigentes
da USP-, não se pode aceitar que herdeiros dessa tradição se arvorem em
defensores de valores tão vagos e imprecisos como o direito do povo.
As "tradições democráticas da população brasileira" invocadas pela ditadura dos anos 1960 e o "direito do
povo" hoje invocado pelos invasores
da reitoria da USP se identificam na
irracionalidade dos meios de que se
valem: invasão violenta de espaços
institucionais, expulsão de pessoas de
seus espaços de trabalho, violação de
direitos, intolerância diante de opiniões divergentes.
Tais atitudes são incompatíveis
com o Estado de Direito que o país vive hoje e com o clima institucional
que vige na universidade. Violência e
intolerância são visceralmente incompatíveis com a instituição universitária, comprometida desde sua origem com a discussão, com a pluralidade de pontos de vista, com o respeito à divergência.
Se, desde o dia 3/5, a invasão da reitoria da USP atropelou o direito dos
que lá trabalham e, mais do que isso,
atropelou o pacto de institucionalidade que rege direitos e deveres de servidores e usuários de uma instituição
pública, o desenrolar das negociações
só confirmou a superficialidade, o
equívoco e talvez mesmo a má-fé dos
álibis dos invasores.
As exigências para a desocupação
variaram de envergadura. Incluíam,
em diferentes momentos, desde a revogação de decretos governamentais
ao número de refeições semanais servidas no campus e aos serviços de
transporte subsidiado para estudantes nos finais de semana.
Não apenas variaram as reivindicações como também se enrijeceu cada
vez mais a disposição dos invasores
de dialogar -isto é, de ouvir e de ponderar as razões dos invadidos. Os invasores nunca foram legitimados pelos órgãos estudantis, seus porta-vozes tampouco eram legitimados pelos
seus companheiros de invasão e também seus mediadores foram sumariamente desautorizados na prática.
A população que paga seus impostos e que com eles financia a Universidade de São Paulo quer, sim, uma universidade pública e gratuita de qualidade. E nós também o queremos. A
população, porém, não elegeu como
porta-vozes nem os invasores, nem os
servidores, nem os docentes que se
solidarizam com a invasão. A população que paga seus impostos e que com
eles financia a USP respalda uma
Constituição que estabelece as relações do Estado com o ensino superior
e elegeu para governador o professor
José Serra.
É possível que algumas das medidas do governador não sejam do agrado de todos. Merecem respeito os que
assim pensam. Porém, a violência
contra prédios públicos não constitui
resposta tolerável em plena vigência
do Estado de Direito e, sobretudo, numa instituição comprometida com a
racionalidade e voltada para a produção e a difusão do conhecimento.
Tomar a lei nas próprias mãos em
nome de um vago direito da população de ocupar um prédio público é
apanágio de movimentos e governos
totalitários, como o que no Brasil de
1964 e de 1968 implantou, manteve e
intensificou uma ditadura. Se, naquele tempo, a universidade soube responder à truculência dos ataques que
sofreu, também saberá hoje responder ao obscurantismo de facções que,
sem distinguir democracia de licenciosidade, atropelam o Estado de Direito que a Universidade de São Paulo, desde sua fundação, vem ajudando
a construir e a manter.
FRANCO LAJOLO, 66, é vice-reitor da USP (Universidade
de São Paulo) e professor titular da Faculdade de Ciências
Farmacêuticas da mesma universidade.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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