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MARINA SILVA
Eles não falaram
FORAM DUAS horas, na casa de
meu avô, no antigo seringal
Bagaço, no Acre. Meu pai não
tirava o ouvido do rádio, segurando
o botão para manter a frequência e
melhorar o chiado, a outra mão
agarrada à tábua que era o suporte
do aparelho. Equilibrava-se ora
num pé, ora noutro, sem arredar
um minuto. Ele acompanhava a
transmissão da posse do general
Garrastazu Médici na Presidência
da República, em outubro de 1969.
A criançada ao lado, em silêncio,
sabia só que estava acontecendo alguma coisa muito importante.
Quando terminou, meu pai desligou o rádio, soltou os braços ao longo do corpo e olhou para minha
mãe: "Ele não falou nada do aumento do preço da borracha".
Na semana passada, me vi tendo
a mesma reação de desânimo de
meu pai. Li atentamente as entrevistas do presidente Lula e do ex-presidente Fernando Henrique à
revista "Época" sobre as perspectivas do Brasil para 2020. E eles não
falaram nada do meio ambiente.
Para não dizer que não tocaram
no assunto, um o abordou ainda
como problema, e o outro como
exemplo de um tema novo da globalização. Mesmo assim, "en passant". Claro, trataram de temas importantes, demonstraram ser duas
das mais importantes lideranças
brasileiras, mas ambos estão na
agenda do século 20, não tangenciaram a mudança de perspectiva
que é a marca do século 21.
Os dois presidentes já tomaram
iniciativas importantes na área
ambiental, ambos têm discursos
bem formulados a esse respeito,
mas no improviso, parece que a
coisa não vem de dentro. Parece
não estar no cerne de sua concepção de futuro.
Não reconhecem no
Brasil, mais do que em qualquer
outro país, o território propício ao
surgimento de um modelo de desenvolvimento capaz de fazer a fusão concreta da justiça social sempre procurada, da dinâmica econômica e da dinâmica ambiental.
No momento da decepção de
meu pai, a empresa extrativista na
Amazônia entrava em total decadência.
As fazendas começavam a
ocupar espaço, a campanha "integrar para não entregar" entrava no
ar, fazia-se propaganda para a compra de terras na região. Um mundo
entrava em colapso, e quem havia
passado a vida dentro da mata se
sentia perdido.
Hoje, em âmbito incrivelmente
maior, estamos num sistema em
decadência e, novamente, não se
tem uma visão estratégica de futuro, com sustentabilidade. O modo
dominante de pensar está ancorado em questões compartimentadas. Há uma enorme dificuldade
em reconhecer no ambiente natural o eixo integrador, a fonte dos limites, das oportunidades e do rumo que deve tomar a mudança estrutural que é a tarefa civilizatória
do nosso século.
contatomarinasilva@uol.com.br
MARINA SILVA escreve às segundas-feiras nesta coluna.
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