São Paulo, sexta-feira, 02 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Duas entrevistas e suas interpretações

JARBAS PASSARINHO


A propriedade pública, outra utopia do marxismo, não provou ser melhor que a propriedade privada

José Serra e Fernando Gabeira, falando do PT, surpreenderam com afirmações inesperadas. Serra, entrevistado pela Folha, tratando da transformação pragmática do discurso socialista radical de 1989, do PT, para o aliancista de 2002, que o elevou ao governo, lastimou que o partido houvesse renegado a utopia, que "era a melhor coisa do bolchevismo".
Jacob Gorender, a quem leio sempre com o cuidado de não me deixar convencer, em seu "Marxismo sem Utopia", ao contrário de Serra, condena o equívoco de Marx e Engels, que, "pretendendo-se científicos, ainda foram fortemente utopistas". A esse viés utópico atribui o fracasso do comunismo ao longo do século 20. "Em primeiro lugar" -escreveu-, "não há perspectiva de nova aventura bolchevique. O bolchevismo leninista do partido único, planejamento total da economia, Estado totalitário e policialesco e controle absoluto da vida social foi inapelavelmente condenado". Cita dois terríveis exemplos de líderes que, uma vez dominando seus países, obrigaram seus povos a se "ajeitarem ao leito de Procusto da utopia e para isso não vacilaram em praticar mutilações cruéis. Stálin, ao implantar a utopia socialista num só país, levou-o aos massacres repressivos e a uma das piores tiranias da história". Pol Pot, por seu turno, visando concretizar "a utopia igualitária, encheu o Camboja de cadáveres".
A partir da falência do socialismo real, Gorender se pergunta se rejeitar o bolchevismo não significa aderir ao "bom capitalismo" humanizado. E como isso não aceita, sugere uma "alternativa socialista-comunista sem utopia". Recomenda o socialismo fundamentado na ciência, mas uma ciência que evite "o viés do determinismo". Ou seja, conscientizar-se o socialista de que na sua luta não contará com a certeza a seu favor, de que a história se encarregará fatalmente de fazer vingar o socialismo. Aí está uma das utopias mais cultivadas pelos seguidores de Marx: o determinismo histórico, as leis inelutáveis da história, afetando o materialismo histórico.
Não creio haver Serra louvado essas utopias entre as "melhores coisas do bolchevismo". O igualitarismo talvez, na medida em que é um estandarte de que a esquerda se orgulha de ter o monopólio, como a direita o faz da liberdade. Há mais de 200 anos, empolgou a marcha sobre a Bastilha e até hoje a França busca encontrá-la e não a encontra, mesmo nos governos socialistas que tem tido desde Leon Blum até François Mitterrand, senão na tríade famosa que a associa à fraternidade (inexistente mesmo entre os países comunistas) e à liberdade.
A propriedade pública, outra utopia do marxismo como garantia de eliminação da mais-valia exploradora do capitalista, não provou ser melhor que a propriedade privada. Como Serra defendeu, no consulado tucano, a privatização, é claro que também não teve simpatia pelo estatismo socialista. De sorte que, quando diz que a utopia era a melhor coisa do bolchevismo, gera a dúvida sobre qual a utopia que lastimou haver o PT dela se descartado.
Ora, as utopias do bolchevismo, objeto da crítica de Gorender, não inspiram saudade. Estão longe de haver produzido "coisas boas". Historicamente, o bolchevismo que Lênin usou para vencer os mencheviques de Martov e denominar comunista o seu partido levou o socialismo real ao fracasso. Serra, analogamente, ficaria mais próximo de Martov, na herança do Partido Operário Social-Democrata, ascendente longínquo dos social-democratas modernos, equidistantes do socialismo como do liberalismo, sem utopia dominante, exclusão feita ao igualitarismo.
Fernando Gabeira dissertou sobre a metamorfose das ideologias, um mês depois, para a revista semanal "Brasília em Dia", de Brasília. Disse haver se desentendido com o PT por algumas razões, entre elas "pela extrema tolerância do partido em relação às transgressões que acontecem no campo da esquerda. Fidel Castro e Cuba não podem ser exemplos para nenhum país do mundo. Em Cuba vemos hoje uma grande crise econômica e um governo que se mantém à custa da repressão e de um aparato de espionagem extremamente sofisticado". Além de crítico da Revolução Cubana, afirma que "muitas das velhas ideologias perderam seu significado, inclusive a baseada na transformação através da luta de classe".
É o reconhecimento do abandono da crença na ideologia original do autor de "O que É Isso, Companheiro?", abalada na queda do Muro de Berlim e levada ao colapso com a União Soviética, quando o símbolo da foice e do martelo já fora substituído pelas filas imensas de demanda de bens inexistentes pelo desabastecimento.
Resta o resíduo ainda existente na Coréia do Norte, onde o povo sofre epidemia de fome, mas o ditador orgulha-se de ter a bomba atômica. Em Cuba, desde que perdida a doação, com o fim da URSS, o velho ditador -tão amado pela esquerda anacrônica brasileira- vive dos dólares que os exilados cubanos mandam para seus parentes na ilha e do turismo convivendo com a prostituição.
Como afirma Gabeira na entrevista, "as grandes tendências ideológicas já não existem mais". Na China, oficialmente comunista, há o experimento do "socialismo de mercado", que faria Mao voltar horrorizado à sepultura se ressuscitasse. Exatamente agora, o Partido Comunista chinês, rendido à sedução do mercado, faz tramitar no Congresso Nacional do Povo emenda constitucional que assegura o direito à propriedade privada, que Marx via como a origem da exploração do homem pelo homem, pelo que pregava a sua abolição.
Da utopia bolchevista resta o balanço dos massacres repressivos que Gorender reconhece ao se referir ao "Livro Negro do Comunismo": "Ainda que reduzíssemos as cifras à metade, como sugere Hobsbawm, teríamos de nos haver com uma hecatombe só superada pela Segunda Guerra Mundial, um sacrifício, como acusa Bobbio, que deu em nada, sangue que escorreu pelo ralo da história e se perdeu na vala comum das incontáveis vítimas da perversidade do homem contra sua própria espécie".
As duas entrevistas sugerem, de um lado, uma saudade utópica, de outro, uma dolorosa frustração.


Jarbas Passarinho, 83, é coronel da reserva. Foi governador do Pará (1964-65) e senador pelo Estado em três mandatos (1967-74, 1975-82 e 1987-95), além de ministro da Educação (governo Médici), da Previdência (governo Figueiredo) e da Justiça (governo Collor).


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