São Paulo, segunda-feira, 02 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Irresponsabilidade fiscal e corrupção

CLAUDIO WEBER ABRAMO


[As PPPs serão] um mecanismo de irresponsabilidade fiscal colocado à disposição do administrador


Tramita no Congresso em regime de urgência projeto de lei do Executivo que regulamenta as chamadas Parcerias Público-Privadas (PPP). As manifestações do governo a respeito do mecanismo frisam o papel que a iniciativa teria na retomada do desenvolvimento, ao estimular o aporte de investimentos privados para a consecução de projetos públicos, com resguardo da responsabilidade fiscal e compartilhamento de riscos.
O exame do texto do projeto não parece, porém, autorizar tais conclusões. Entre outras, duas conseqüências de sua eventual promulgação seriam: 1) ferir a responsabilidade fiscal; 2) facilitar o dirigismo nos processos de concorrência ligados a PPPs.
1) Enquanto hoje a realização de investimentos pelo Estado depende de provisão orçamentária, por sua vez calcada em estimativas da arrecadação em cada período fiscal, a captação de recursos financeiros pelo parceiro privado no âmbito de PPPs projetará endividamento do Estado para o futuro -em particular, para governos subseqüentes àqueles que contrataram as dívidas. Tal endividamento será definido por órgão do Executivo, sem passar por nenhuma instância legislativa. Trata-se, assim, de um mecanismo de irresponsabilidade fiscal colocado à disposição do administrador.
Tendo herdado o encargo de pagar os parceiros privados, as administrações futuras se verão perante um dilema: comprometer o custeio de sua operação cotidiana e/ou seu programa de investimentos ou arranjar recursos adicionais para isso. Esses recursos só poderão vir do aumento da carga tributária, nos três níveis. Um dos efeitos colaterais será um aumento da transferência de renda dos menos privilegiados para os mais aquinhoados -a saber, o sistema financeiro e os grandes fornecedores que executarão os projetos.
Observe-se, ainda, que conforme a "carteira de projetos" candidatos a PPP, divulgada em dezembro pelo Ministério do Planejamento, vários projetos serão financiados não pelo sistema financeiro privado, mas pelo BNDES. Será o Estado financiando o Estado, com uma intermediação privada que adicionará desnecessários custos de transação.
2) O aspecto mais preocupante do projeto de lei é o fato de revogar a aplicabilidade da Lei de Licitações e Contratos no caso de projetos de PPP, substituindo-a por um rito licitatório que maximiza a discricionaridade do agente público. São ignoradas as diversas restrições e obrigatoriedades da Lei de Licitações voltadas para a maior transparência de certames.
Para começar, à vontade do administrador, sem qualquer restrição e sem necessidade de justificativa formal, as licitações poderão ser feitas pelo critério de "melhor técnica", sozinho ou em combinação com o menor preço (ou a maior contrapartida). Trata-se de um processo de julgamento em que o administrador confere pontuações -necessariamente subjetivas- às propostas dos concorrentes. É o critério que se usa, por exemplo, para selecionar agências de publicidade que servirão a governos -vence quem o governante quer.
Enquanto segundo a Lei de Licitações nenhuma concorrência de obra pública pode ser empreendida na ausência de projeto básico, de acordo com o projeto o vencedor ficará responsável por sua formulação. O Estado comprará objetos definidos vagamente, impossibilitando a comparação de preços e frisando ainda mais a aplicação do critério "técnico". Imaginem-se as negociações que acontecerão.
O administrador público poderá "solicitar as adequações que reputar convenientes para atendimento do interesse público, até que as propostas sejam consideradas satisfatórias". Com isso, o agente público terá a liberdade de solicitar adequações que sabidamente serão muito mais onerosas para aqueles que sejam menos "amigos". Em nenhum lugar se afirma sequer que tais requisições sejam públicas ou publicamente justificadas.
O prazo que os concorrentes terão para apresentar "adequações" não obedecerá a um padrão geral, mas será apenas "suficiente" e "razoável". Dessa forma, o agente público, devidamente acertado com um concorrente, poderá solicitar adequações que seus "amigos" atenderão com presteza "razoável", simplesmente porque já detinham a informação pertinente.
Um dos mecanismos mais esdrúxulos que o projeto introduz está expresso no inciso 4º do art. 11: "Os licitantes poderão apresentar novas e sucessivas propostas de preço até a proclamação do vencedor, nas condições e prazos previstos no edital". Note-se que não se trata de um leilão reverso, mas de apresentação arbitrária de novas propostas. Isso significa a destruição da concorrência, pois o agente público sempre poderá admitir a apresentação de novas propostas até que um "amigo" vença.
Caso aprovado, o projeto de lei dará lugar a uma seqüência de legislações semelhantes nos Estados e municípios, rapidamente espalhando pelo país os conceitos mal engendrados dessa iniciativa contrária ao interesse público.


Claudio Weber Abramo, matemático pela USP e mestre em lógica e filosofia da ciência pela Unicamp, é diretor-executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção.


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