São Paulo, segunda-feira, 02 de fevereiro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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A música continua

JOÃO CARLOS MARTINS


A música no Brasil não depende de só uma pessoa, mas de milhares de músicos brasileiros que sempre a dignificaram

UM TURISTA , ao realizar viagem de ônibus pela Europa e pelo Oriente Médio, observou quatro advertências diferentes na porta que separa os passageiros do motorista em quatro países distintos.
Estas foram as recomendações: Portugal - é proibido falar com o motorista; França - quem falar com o motorista será multado; Rússia - quem falar com o motorista irá se justificar em uma delegacia; Líbano - o que você ganha falando com o motorista?
Esta é a razão pela qual eu me pergunto: o que eu ganho comentando a saída de John Neschling da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp)? No entanto, como músico brasileiro e paulistano, sinto-me no direito de expressar a minha opinião.
Dei nesses últimos anos inúmeras entrevistas nas quais sempre disse que vários governadores ou prefeitos do Brasil resolveram ter orquestras de qualidade inspirados pela excelência do regente, dos músicos e dos administradores da Osesp. Rio, Brasília e Minas estão na metade dessa jornada, mas outros Estados também já iniciaram a caminhada em benefício da música e da cultura em nosso país.
Infelizmente, a saída do meu amigo John, do qual sou admirador, causou inúmeras polêmicas e, felizmente, todas as opiniões ressaltam o excepcional trabalho por ele realizado. Não há dúvida de que é seu mérito ter mostrado a Mario Covas e Marcos Mendonça a importância de uma orquestra de ponta no Brasil. Dessa forma vieram os recursos do governo, que hoje somam R$ 43 milhões anuais.
Não há dúvida de que Neschling organizou temporadas da mais alta qualidade na Sala São Paulo, tampouco de que ele iniciou a valorização dos nossos músicos de forma exemplar.
Lamento que o maior regente da história do Brasil, Eleazar de Carvalho, que antecedeu Neschling, não tenha tido apoio financeiro do governo para levar a Osesp à situação em que se encontra hoje.
Por outro lado, entendo a atitude do Conselho e do presidente da Fundação Osesp, Fernando Henrique Cardoso, pois uma transição não se faz com entrevistas, mas com diálogos entre as partes. Imaginem vocês, embora este assunto não tenha nada a ver com a nossa orquestra, se a fusão do Itaú com o Unibanco fosse realizada por meio de entrevistas -certamente não teríamos a união.
O Conselho, cujos membros têm um passado de enormes serviços prestados ao Brasil, não poderia ter sido surpreendido por entrevistas em que o maestro disse que a transição estava sendo conduzida com irresponsabilidade. Certamente em qualquer lugar do planeta a mesma atitude teria sido tomada pela direção.
Creio que a Osesp, que hoje está entre as 50 melhores orquestras do mundo, com ótimas apresentações no exterior subsidiadas pelo governo de São Paulo, encontrará o seu caminho com o francês Yan Pascal Tortelier, magnífico maestro -mas, se eu pudesse dar um palpite, recomendaria Isaac Karabtchevsky, o maior regente brasileiro da atualidade e figura carismática no cenário nacional.
Vejo muitas reações válidas do público, mas seria bom perguntar para os próprios músicos da Osesp se eles ficaram bem ou mal no "day after", afinal, eles fazem parte da alma da orquestra. Esses mesmos músicos, cujos salários são bons, mas não de Primeiro Mundo -diferentemente do salário de alguns maestros brasileiros-, podem aparecer em uma foto tocando na Osesp, em outra aparecem na minha Bachiana Filarmônica ou em outras orquestras e, infelizmente, para poderem sobreviver, também podem aparecer em uma foto tocando em algum casamento.
Eles deram a vida, assim como John, para o progresso dessa sinfônica. O grupo que criou essa fantástica Sala São Paulo atuou de forma coletiva, com o apoio do governador, de secretários, assessores, arquitetos e do próprio Neschling, e será lembrado não só pelo teatro, mas também pela revitalização do centro de São Paulo.
Li uma entrevista do nosso maestro em que ele menciona a preocupação na Europa pela sua saída. Tenho certeza de que, nessa hora, fica difícil dar entrevistas, pois pode haver um pequeno exagero. Será que no Brasil alguém ficou preocupado, por exemplo, com a saída de Zubin Mehta da Filarmônica de Nova York, uma das melhores orquestras do mundo?
Sendo essa a realidade, acredito que a Europa acolherá o nosso ótimo maestro, da mesma forma como a Osesp continuará honrando nosso Estado e nosso país.
PS: Escrevi estas linhas por não concordar com o título do artigo do crítico francês Alain Lompech, "Adeus à música" (Tendências/Debates, 25/1), pois a música em nosso país não depende de uma única pessoa, mas de milhares de músicos brasileiros, clássicos e populares, que sempre a dignificaram.


JOÃO CARLOS MARTINS é regente da Bachiana Filarmônica.


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