São Paulo, terça-feira, 02 de março de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Escombros e alegorias

RIO DE JANEIRO - Uma confusão no trânsito da cidade obrigou-me a pegar atalhos urbanos pouco freqüentados. E esbarro com monstruosos carros alegóricos do último Carnaval, ensopados de chuva e de purpurina, alguns se desmanchando, misturando cobras, lagartos, sereias, demônios, cascatas e ninfas, num amontoado fosforescente de cadáveres em decomposição.
Devem ter custado dinheiro e trabalho dos especialistas. Por pouco mais de 15 minutos, deslumbraram a multidão e entupiram as TVs, os jornais e as revistas com o chamado "esplendor e glória" do Carnaval.
Mesmo que se desconte o abandono e a chuva, como são feios, grosseiros, mal-acabados! (Diante do mau gosto coletivo, apelo para o mau gosto individual do ponto de exclamação). Desarticulados de suas escolas e enredos, parecem paródias coloridas daqueles monstros que Goya fazia em preto e branco em sua Quinta del Sordo.
Sempre acreditei que, passado aquilo que chamam de folia, os carros, que tanto custaram, fossem recolhidos a um santuário ou canibalizados para outros carnavais, reciclados de uma forma ou de outra. Não compreendi o abandono. Colossos insepultos atrapalhando os caminhos da cidade e os meus próprios caminhos, levei o dobro do tempo para chegar ao meu destino.
Tive vontade, mas não amaldiçoei aqueles escombros. De certa forma, considero-me também um escombro, e seria natural que sentisse uma vaga solidariedade com os monstros de papel machê e fibra de vidro bolados pelos cenógrafos carnavalescos.
Se fosse um feiticeiro de conto infantil, ou um mago como o Paulo Coelho, jogaria em cima deles aquele pó encantado que os tornaria eternos. Pesquisadores do futuro, tal como seus antecessores de todas as épocas, escreveriam tratados sobre o significado deles, sua importância para a humanidade deste início de século. Creio que fariam péssimo juízo de nós.


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