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Miséria do pensamento binário
ANTONIO NEGRI e GIUSEPPE COCCO
Quando se trata da Venezuela, é preciso "cobrar democracia"; quando se trata da China, imitar seu modelo de crescimento
A GUERRA do Iraque mostra o
que se esconde por trás da retórica imperial da "defesa" da
democracia: a efetividade de um poder sem legitimidade.
Ora, as elites latino-americanas repetem o discurso da administração
Bush: Hugo Chávez representaria
uma ameaça às "tranqüilas democracias" do continente.
Quando o ditador Pinochet faleceu,
um economista neoliberal explicitou
o cinismo desse tipo de pensamento:
"A tese de Giannetti da Fonseca é que
os países que optaram por fazer a reforma econômica antes da política,
como foi o caso do Chile, obtiveram
resultados melhores (...). Para o economista, a China, por exemplo, está
seguindo os passos do Chile ao promover a transição primeiro na economia" (Folha, 12/12/06).
Quando se trata da Venezuela, ou
seja, de um presidente várias vezes
eleito e radical e democraticamente
arrancado das mãos dos golpistas pela multidão, é preciso "cobrar democracia". Quando se trata da China, é
preciso imitar seu modelo de crescimento. O problema é que esse objetivo coloca no mesmo barco (nacional-desenvolvimentista) amplos setores
da direita e da "esquerda".
Por que direita e esquerda se misturam? Uma das razões está no fato
de a "esquerda" continuar a pensar a
partir de conceitos binários. À pergunta "O que é a globalização?" responde-se: "O enfrentamento (...) do
mercado contra o Estado, do setor
privado contra os serviços públicos,
do indivíduo contra a coletividade".
Ora, desde os anos 30 sabemos que
o processo de individualização é só a
outra face da construção do coletivismo. As massas -sejam elas voltadas
para a produção de massa, sejam para
o consumo de massa- são compostas
de indivíduos serializados.
Desde que há capitalismo, sabemos
que não há mercado sem Estado. São
os Estados que tornam ilegais os migrantes (em defesa do mercado "nacional" de trabalho), assim como são
os Estados que mantêm a anacrônica
legislação do "copyright", penalizando o direito público do trabalho colaborativo em rede ("copyleft").
Na realidade, ao resumir a "globalização" como um simplório "complô"
neoliberal ao qual seria preciso opor a
"soberania" do Estado-nação, o pensamento binário cai na armadilha
conservadora. Qualquer tentativa de
apreender as transformações do capitalismo é assim rotulada como sendo
mera ideologia pós-moderna.
É aqui que voltamos à China: diz-se
que seu crescimento e suas massas
operárias demonstrariam o potencial
ainda vivo do "modelo industrial". A
China funciona, explícita ou implicitamente, como a modernidade que
resistiria à pós-modernidade, os "investimentos produtivos" que se ergueriam contra "o capitalismo financeiro inflado e anômalo" de um "dinheiro sem mediação com os processos reais" (Maria Sylvia Carvalho
Franco, Folha 4/1).
Ignora-se que, ao contrário da era
fordista, os motores do crescimento
chinês são globais (investimentos externos e exportações) e se traduzem
em excedentes financeiros revertidos, pelos chineses, em novos fluxos
de investimentos globais: na África e
na América Latina, por exemplo.
Com efeito, não se leva em conta
que o "valor" da produção "material"
chinesa está nas redes -globais- do
trabalho imaterial e cognitivo, aquelas redes que o capital financeiro (que
nada tem de fictício) se esforça para
hierarquizar e controlar.
O pensamento binário se dobra assim sobre si mesmo, de maneira conservadora e antimarxista. Marx se esforçava para apreender as contradições internas do nascente modo de
produção capitalista, criticando as
novas formas de exploração sem nenhuma saudade do trabalho dos ofícios e da servidão. Hoje, precisamos
apreender as contradições dentro da
pós-modernidade ante novas relações que ligam o mercado e o Estado,
o individualismo e o coletivismo.
Nesse sentido, o que há de interessante na dinâmica venezuelana são as
dimensões abertas: de desconstrução
das relações que ligavam o Estado ao
mercado e de experimentação democrática dentro da globalização.
ANTONIO NEGRI, 72, filósofo italiano, é professor titular
aposentado da Universidade de Pádua (Itália) e professor
de filosofia do Colégio Internacional de Paris (França). Entre outras obras, escreveu, em parceria com Michael
Hardt, os livros "Império" e "Multidão".
GIUSEPPE COCCO, 51, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras
obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro "Glob(AL):
Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".
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