São Paulo, sexta-feira, 02 de março de 2007

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Miséria do pensamento binário

ANTONIO NEGRI e GIUSEPPE COCCO

Quando se trata da Venezuela, é preciso "cobrar democracia"; quando se trata da China, imitar seu modelo de crescimento

A GUERRA do Iraque mostra o que se esconde por trás da retórica imperial da "defesa" da democracia: a efetividade de um poder sem legitimidade.
Ora, as elites latino-americanas repetem o discurso da administração Bush: Hugo Chávez representaria uma ameaça às "tranqüilas democracias" do continente.
Quando o ditador Pinochet faleceu, um economista neoliberal explicitou o cinismo desse tipo de pensamento: "A tese de Giannetti da Fonseca é que os países que optaram por fazer a reforma econômica antes da política, como foi o caso do Chile, obtiveram resultados melhores (...). Para o economista, a China, por exemplo, está seguindo os passos do Chile ao promover a transição primeiro na economia" (Folha, 12/12/06).
Quando se trata da Venezuela, ou seja, de um presidente várias vezes eleito e radical e democraticamente arrancado das mãos dos golpistas pela multidão, é preciso "cobrar democracia". Quando se trata da China, é preciso imitar seu modelo de crescimento. O problema é que esse objetivo coloca no mesmo barco (nacional-desenvolvimentista) amplos setores da direita e da "esquerda".
Por que direita e esquerda se misturam? Uma das razões está no fato de a "esquerda" continuar a pensar a partir de conceitos binários. À pergunta "O que é a globalização?" responde-se: "O enfrentamento (...) do mercado contra o Estado, do setor privado contra os serviços públicos, do indivíduo contra a coletividade".
Ora, desde os anos 30 sabemos que o processo de individualização é só a outra face da construção do coletivismo. As massas -sejam elas voltadas para a produção de massa, sejam para o consumo de massa- são compostas de indivíduos serializados.
Desde que há capitalismo, sabemos que não há mercado sem Estado. São os Estados que tornam ilegais os migrantes (em defesa do mercado "nacional" de trabalho), assim como são os Estados que mantêm a anacrônica legislação do "copyright", penalizando o direito público do trabalho colaborativo em rede ("copyleft").
Na realidade, ao resumir a "globalização" como um simplório "complô" neoliberal ao qual seria preciso opor a "soberania" do Estado-nação, o pensamento binário cai na armadilha conservadora. Qualquer tentativa de apreender as transformações do capitalismo é assim rotulada como sendo mera ideologia pós-moderna.
É aqui que voltamos à China: diz-se que seu crescimento e suas massas operárias demonstrariam o potencial ainda vivo do "modelo industrial". A China funciona, explícita ou implicitamente, como a modernidade que resistiria à pós-modernidade, os "investimentos produtivos" que se ergueriam contra "o capitalismo financeiro inflado e anômalo" de um "dinheiro sem mediação com os processos reais" (Maria Sylvia Carvalho Franco, Folha 4/1).
Ignora-se que, ao contrário da era fordista, os motores do crescimento chinês são globais (investimentos externos e exportações) e se traduzem em excedentes financeiros revertidos, pelos chineses, em novos fluxos de investimentos globais: na África e na América Latina, por exemplo.
Com efeito, não se leva em conta que o "valor" da produção "material" chinesa está nas redes -globais- do trabalho imaterial e cognitivo, aquelas redes que o capital financeiro (que nada tem de fictício) se esforça para hierarquizar e controlar.
O pensamento binário se dobra assim sobre si mesmo, de maneira conservadora e antimarxista. Marx se esforçava para apreender as contradições internas do nascente modo de produção capitalista, criticando as novas formas de exploração sem nenhuma saudade do trabalho dos ofícios e da servidão. Hoje, precisamos apreender as contradições dentro da pós-modernidade ante novas relações que ligam o mercado e o Estado, o individualismo e o coletivismo.
Nesse sentido, o que há de interessante na dinâmica venezuelana são as dimensões abertas: de desconstrução das relações que ligavam o Estado ao mercado e de experimentação democrática dentro da globalização.


ANTONIO NEGRI, 72, filósofo italiano, é professor titular aposentado da Universidade de Pádua (Itália) e professor de filosofia do Colégio Internacional de Paris (França). Entre outras obras, escreveu, em parceria com Michael Hardt, os livros "Império" e "Multidão". GIUSEPPE COCCO, 51, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro "Glob(AL): Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".

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