São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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TRIBUNAL RACIAL

No rastro de outras universidades federais, a Universidade de Brasília (UnB) instituiu um sistema de cotas para estudantes negros. Mas, a pretexto de evitar "fraudes", a UnB inovou: os candidatos que optam pelo sistema de cotas são fotografados e uma comissão, encarregada de escrutinar as imagens, homologa ou não as inscrições. A comissão da UnB merece a qualificação de primeiro tribunal de pureza racial instalado no Brasil.
O sistema censitário brasileiro opera por meio da autodeclaração para distribuir a população em grupos segundo a cor da pele. O recurso à autodeclaração decorre do reconhecimento de que a espécie humana não se divide em raças. A identidade "racial" reflete o racismo: é subjetiva e mutante. No Haiti, um ditado em "créole" assevera que "nèg rich sé mulat, mulat póv sé nèg" (negro rico é mulato, mulato pobre é negro).
A autodeclaração funciona nos recenseamentos, que não colocam em jogo interesses individuais, mas não serve para finalidades de concessão de privilégios em concursos públicos. A "solução" da UnB cria um precedente para a institucionalização de identidades raciais no Brasil.
O tribunal racial criado em Brasília não será capaz de identificar de modo objetivo a "raça negra". Um estudante branco, que tem bisavô negro, inscreveu-se no sistema de cotas da UnB e prometeu contestar judicialmente a eventual não-homologação da sua inscrição. A proliferação do sistema de cotas, nas universidades e órgãos públicos, provocará inexoravelmente a multiplicação de contestações judiciais. Além disso, por razões evidentes, indivíduos "certificados" como negros em determinado concurso serão catalogados como brancos em outros concursos, gerando debates insolúveis sobre a determinação da identidade racial.
Uma hipótese aterradora é a de submeter todos os brasileiros a uma classificação racial padronizada, inscrevendo a nova informação na carteira de identidade. Além de fotos, os critérios de classificação acabariam incluindo, possivelmente, a medição do tamanho do nariz, como se fazia no século 19, e o exame da proporção de "contribuições raciais" dos ancestrais, como fez a Alemanha nazista. A alternativa é cumprir a Constituição, que proíbe explicitamente o estabelecimento de distinções de natureza racial entre os cidadãos.
O contrato republicano sustenta-se sobre o princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos. O sistema de cotas "raciais" preconizado pelo governo federal é um atentado direto a esse contrato, e o tribunal racial da UnB é a expressão mais acabada do desprezo por seu princípio básico.
O princípio da igualdade, porém, não impede o uso de ações afirmativas. A USP, por exemplo, anunciou a criação de um curso pré-vestibular gratuito destinado a estudantes carentes de todas as cores. O MEC e a Secretaria da Promoção da Igualdade Racial não mostraram entusiasmo pela iniciativa, preferindo insistir na política de cotas. É que o caso do cursinho da USP evidencia as deficiências do ensino e as assimetrias econômicas, levando a um debate que talvez o governo prefira evitar.


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