São Paulo, terça-feira, 02 de maio de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Por que a Rocinha?

CESAR MAIA

A Rocinha -comunidade carioca com 70 mil habitantes, segundo o IBGE- ocupa periodicamente espaços na imprensa por conta de tiroteios provenientes da disputa pelo controle da venda de drogas. Por que os traficantes se interessam tanto pela Rocinha? Ela é uma favela com IDH maior que todos os Estados do Nordeste. A meta de oferta de vagas no Pró-Jovem, lá, não foi atingida, pois não há tantos jovens sem o primeiro grau completo. Se excluirmos os migrantes e os maiores de 40 anos, não haveria analfabetismo na Rocinha. É uma comunidade que conta com todos os serviços comerciais, com agência de banco, supermercado, dezenas de lojas de aluguel de vídeos e até com uma estação de TV comunitária, a TV ROC.


Quem pensa que extorquir traficantes é atrativo se engana. Atrativo mesmo é "mineirar" ilustres consumidores de cocaína


Então, por que a Rocinha? Porque ela fica no meio de bairros de classe média/alta, como Gávea, Jardim Botânico, Lagoa, Leblon e São Conrado. Com isso, tornou-se o maior macrovarejista de drogas do Rio. Estudos dos setores de inteligência policial calculam que a Rocinha é responsável por 35% do total da venda de drogas no varejo na cidade do Rio. Para isso, precisam distribuir espacialmente esse comércio e contam com mais de 40 bocas-de-fumo ou pontos-de-venda de drogas.
A demanda dos bairros que cercam a Rocinha é atendida de três formas: uma, através dos que vão até lá e compram diretamente. Outra, através do serviço de motodelivery, ou seja, os motoboys que entregam a droga a domicílio. E, finalmente, pela ação dos repassadores, que compram ali e vendem em outro lugar. Não é incomum ter uma relação de proximidade entre visitantes ilustres e traficantes. O exemplo mais emblemático disso unia o nome do traficante Lulu -morto pela polícia há um ano e meio- a pessoas muito conhecidas.
Um entreposto desse tipo, que abastece a classe média e média-alta da zona sul -e, certamente, acima disso-, é de alto valor comercial, e por isso o controle da área é tão disputado. Sem esquecer que é também uma área de alta atratividade para certos policiais. Quem pensa que "mineirar" (extorsão por parte de policiais) traficantes é atrativo se engana. Atrativo mesmo é "mineirar" ilustres consumidores de cocaína ou pais de jovens viciados de classe média, que pagam o pedágio para evitar o flagrante. Por essa razão, as escutas telefônicas -grampos- na Rocinha são generalizadas. Identificado e localizado o consumidor, avalia-se o seu poder aquisitivo e se vai "mineirar" sem riscos e com alta taxa de retorno. As listas de nomes grampeados não são de difícil acesso. Recentemente, soube-se que um importante empresário, possuidor de certa quantidade de cocaína que excedia o consumo pessoal, pagou R$ 300 mil pelo "esquecimento" dos policiais.
Quando acontecem os tiroteios, o foco, geralmente, é a favela, e as opiniões e relatos da imprensa criminalizam o lugar e a própria existência da comunidade. Esquecem-se que a atratividade da área é dada pelo volume e pela renda dos consumidores de drogas. Uma análise, ou mesmo uma cobertura jornalística isenta, deveria abordar também esse aspecto, de modo que não ficasse a impressão aos desavisados de que tudo se explica pela existência das favelas em área nobre.
Aliás, a própria existência da Rocinha, e de outras favelas, se dá pela proximidade de um mercado de trabalho ativo, numa situação em que não há transporte público de massa, onde os salários são historicamente baixos e na qual inexiste uma política de habitação popular subsidiada. Se tomarmos a proporção de pessoas que vivem em favelas no Rio -algo entre 18% a 19%-, constatamos que essa proporção não variou desde o final do século 19, embora naquela época se tratasse basicamente de cortiços. Um censo do final dos anos 40, que apresentava essa porcentagem, foi adulterado, enquanto o censo de 1950 mudou parâmetros para não chegar aos mesmos números. Lembro que a taxa de mortalidade infantil nas favelas, nos anos 40, quase alcançava 40%, e a expectativa de vida não chegava aos 45 anos.
Portanto a sustentação da mesma porcentagem é, em si mesma, uma importante contenção. Pelas razões de mercado, há quase um coeficiente constante entre presença de classe média e entorno de trabalhadores, ocupando historicamente os espaços disponíveis. O que cabe fazer é urbanizar, integrar e potencializar essa marca de diversidade e solidariedade que o Rio possui e que não pode ser afetada para reconstruir no imaginário da classe média preconceitos sociais. A sociodiversidade cultural e espacial do Rio é uma marca de sua formação e identidade que não deve ser desmontada depois de décadas de construção de uma cidade integrada.

Cesar Epitácio Maia, 60, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro
@ - cesarmaia@uol.com.br


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