São Paulo, sexta-feira, 02 de junho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O teatro político

FÁBIO KONDER COMPARATO

O RECENTE colapso do sistema de segurança pública em São Paulo representou um claro sintoma de agravamento da doença que há muito acomete o nosso organismo político: o alheamento dos detentores do poder em relação à realidade social. Tem-se a impressão de assistir a uma peça de Pirandello, na qual os atores deixam-se de tal modo absorver pelo seu desempenho dramático que acabam por se alienar duplamente: em relação ao conjunto dos espectadores e também diante de suas próprias personalidades fora do teatro.


Diante desse espetáculo de patologia política, o sentimento do povo evolui da indiferença ao desprezo, antes de virar ódio declarado


As pessoas tornam-se fictícias, e os personagens adquirem vida própria. Tudo se passa como se a política se reduzisse ao espaço circunscrito do mundo oficial, na disputa frenética pela partilha de frações de um poder que, de um momento para o outro, pode desaparecer, como se "a súbita mão de algum fantasma oculto", segundo a expressão de Fernando Pessoa, o desligasse da vida exterior. A máquina do poder passa então a girar em falso, confinada no círculo fechado das mesquinhas ambições e rivalidades medíocres. Diante desse espetáculo perturbador de patologia política, o sentimento geral do povo, confinado à posição de mero espectador, evolui rapidamente da pura indiferença ao claro desprezo, antes de se transformar em ódio declarado. É neste último estádio que parcelas crescentes da população mais carente passam a colaborar com as organizações criminosas, na funesta empreitada de deitar por terra o edifício do Estado. Afinal, por que obedecer a governantes que não atendem às nossas mais elementares demandas de trabalho, saúde, educação, moradia, transporte e previdência e que acabam por destruir o pouco de segurança pública que nos resta, ao se lançarem numa guerra corporativa com os profissionais da delinqüência, a ver quem mata mais em menos tempo? Onde estão os defensores da lei? E, antes de mais nada, quem faz a lei? No interesse de quem? Estarão o Ministério Público e a magistratura habilitados a entender que, num Estado democrático de Direito, os crimes cometidos pelas forças policiais são sempre mais graves que os praticados pelos bandidos, pois a polícia é mantida com recursos públicos e age em nome de todos os cidadãos? São perguntas angustiantes que um número cada vez maior de cidadãos faz em privado, sem coragem (por enquanto) de formular de modo aberto. Não nos iludamos: o colapso do sistema de segurança pública em São Paulo tem todas as características de uma crise repetitiva, alimentada pela crescente falta de confiança dos governados no conjunto das instituições políticas. Numa pesquisa de opinião pública realizada em 2004, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas verificou que mais da metade da população brasileira considera o desenvolvimento econômico mais importante que a democracia. Se quisermos enfrentar a verdadeira causa da moléstia, sem nos contentarmos em minorar os seus efeitos, precisamos superar a nossa velha organização oligárquica e reconhecer ao povo uma soberania efetiva, não apenas retórica. É um trabalho de longo alcance, que exige mudança radical na organização política e a formação de novas mentalidades, mais afinadas com a democracia. No campo institucional, a Ordem dos Advogados do Brasil tomou a iniciativa de oferecer algumas proposições, que se acham atualmente em tramitação no Congresso Nacional. A primeira delas é o projeto de lei destinado a desbloquear a realização de plebiscitos e referendos e de reforçar a iniciativa popular legislativa. A segunda medida é a criação do referendo revocatório de mandatos eletivos, de sorte que o povo possa destituir diretamente os agentes políticos que desmereceram a sua confiança. Além disso, a OAB acaba de apresentar à Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados uma sugestão de projeto de lei para regular estritamente os gastos oficiais com publicidade; e propugnará brevemente pelo reconhecimento constitucional da autonomia das polícias judiciárias em relação ao Executivo e pela instituição de ouvidorias de polícia autônomas em todo o país. Quem sabe, em dia não muito longínquo, aquele conjunto de personagens à procura da própria identidade acabe por reconhecer, enfim, que o verdadeiro protagonista do drama político brasileiro ainda não foi chamado ao palco e sofre a tentação cada vez mais aguda de pôr fogo no teatro.
FÁBIO KONDER COMPARATO , 69, advogado, doutor pela Universidade de Paris (França) e doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra (Portugal), é professor titular da Faculdade de Direito da USP. É autor, entre outras obras, de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos".


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: José Aristodemo Pinotti: Manual de instruções de nossa morada

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.