São Paulo, terça-feira, 02 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ROBERTO MANGABEIRA UNGER

A reviravolta

A sucessão presidencial tem tudo para acabar em reviravolta. A reviravolta não será repentina nem espetacular. Resultará de esforço paciente em demonstrar que há outro rumo a seguir e que já apareceu quem possa liderar o país em trilhá-lo. E acabará por triunfar sobre arsenal de intimidações que já inclui desde o dinheiro dos banqueiros até o desvirtuamento da Polícia Federal.
O rumo de que o Brasil precisa consiste na recuperação da capacidade financeira e estratégica do Estado, no reposicionamento internacional do país, na ampliação do acesso às oportunidades para qualificar-se, empregar-se e produzir, na valorização do salário real, com consequente aprofundamento de um mercado de consumo de massa, e na construção de rede de ensino público e de saúde pública capaz de atrair a classe média em proveito de todos os usuários do serviço. A crise de confiança financeira que vivemos é por sua própria natureza efêmera. Contrariamente ao que se supõe, não faltam estratégias de transição capazes de superá-la. Temos de escolher entre elas de acordo com dois critérios: assegurar a primazia dos interesses da produção e, ao assegurá-la, democratizar a economia de mercado no Brasil.
A essência da liderança necessária -liderança a ser desempenhada por grupo, não apenas por indivíduo- está na capacidade de reconciliar dois imperativos: negociar e mobilizar. Quem propõe mudança sem negociar com os interesses poderosos e organizados descamba para a aventura e a derrota. Quem negocia sem mobilizar as maiorias desorganizadas -inclusive a maioria desorganizada da classe média- acaba refém das elites econômicas e políticas. Sem negociação, a mobilização se perde. Sem mobilização, a negociação se esteriliza.
Pode o país, com seus instrumentos falhos de política e de informação, descobrir onde e com quem iniciar o caminho? Pode sim, porque a campanha que começa agora terá riqueza suficiente de incidentes e de exposições para servir de processo rápido e concentrado de aprendizagem coletiva. A frustração em ouvir o que parece um mesmo discurso adotado por todos os candidatos presidenciais se dissipará à medida que se comecem a perceber os contrastes decisivos de orientação e de compromisso. A tentativa quase unânime da mídia de declarar a sucessão definitivamente polarizada entre o candidato oficial e o candidato do PT e de insistir na estreiteza da margem de manobra do futuro governo apenas estimulará o eleitorado a buscar a opção que se lhe querem sonegar. A fabricação de dossiês e difamações por colaboradores negocistas de um candidato que encara o embate menos como campanha eleitoral do que como campanha militar não desviará o foco do eleitorado. Apressará, porém, a incriminação desses negocistas.
Apesar do desencanto com a política, o Brasil tem hoje fome de projeto e de liderança. O momento é de constância na elucidação de propostas e na reunião de forças. Nenhum país no mundo, rico ou pobre, ostenta hoje cultura de auto-ajuda e de empreendimento mais vigorosa, embora desequipada, do que o nosso. E nenhum tem discussão mais viva e rica, ainda que confusa e truncada, sobre seu futuro nacional. O Brasil, esse país de intuitivos e de improvisadores, em que o sincretismo tem sido o problema e a solução, chegou ao dia de olhar para dentro de si mesmo. Descartando o roteiro que lhe prepararam, escreverá outro melhor. A reviravolta na sucessão será o sinal.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

www.idj.org.br



Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Pirataria autoral
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.