São Paulo, sexta-feira, 02 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula e cultura popular

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Cessado o alvoroço da festa junina de Lula e Marisa, é tempo de ver suas implicações graves.
Restrita aos íntimos, seu burlesco seria de somenos, como vários feitos do casal: o cantinho do namoro, os embalos "country", o futebol e churrasco marinados em cachaça e cerveja. Mas, exorbitando o gosto banal, aqueles festejos invadiram a esfera pública, a exemplo de outras condutas do par: as gafes diplomáticas, a ilegal estrela em jardins tombados, o passar de chapéu para reformas em bens nacionais etc. A violação mais óbvia do plano político sobressai na mascarada de áulicos submissos aos caprichos do líder. "O ministro faz o passo de bajulador, de criado ou de mendigo perante seu rei. O cortejo de ambiciosos dança de mil modos, mais vis uns que os outros" ("Sobrinho de Rameau").
O menos visível e mais alarmante significado ético desse evento, porém, é certa opacidade da opinião pública, caracterizando-o como "caipira", seja para execrá-lo, seja para defendê-lo, invocando estereótipos e preconceitos. Aquela festa nem é caipira, nem segue tradições. Lembremos alguns prismas da velha cultura rural, vivida "no provisório da aventura", equilibrada na base de mínimos vitais e sociais, compensados pela contraprestação vicinal, familiar e produtiva, pelo farto lazer e parca necessidade de trabalhar. (A. Cândido, "Parceiros do Rio Bonito"). Desse ritmo social e biológico nasceu o fantasma do caipira indolente, "símbolo de preguiça e fatalismo, de sonolência e imprevisão, de esterilidade e tristeza, de subserviência e embotamento" (Rui Barbosa).
Se, de um lado, a cultura instável tolheu as tradições, de outro, definiu forte "ethos", normas reguladoras de um estilo de vida ora solidário, ora violento. Nesses grupos precários, a vida católica constituiu alguma solidez. Nos bairros e capelas sucedem-se as missas, rezas, procissões, quermesses. As irmandades locais, com sua hierarquia, elegem o festeiro, que promove o evento, reúne os "ajutórios" (leitoas, aves, ovos, bolos, doces), apura o lucro ou cobre os prejuízos. As prendas são vendidas ou leiloadas em prol da igreja.


Lula afirma-se "pai" da população, mas desrespeitou sua "prole" ao dar a festança desairosa


A Irmandade de São João ultrapassa os bairros. Sua festa também associa ritos religiosos e intensa sociabilidade, em efemérides que exigem a melhor fatiota: nos homens, terno de brim ou camisa e calça de algodão; nas moças, vestido modesto, mas próximo à moda; nas mais velhas, saia e bata estampada, os cabelos em birote. A quadrilha, dança camponesa arcaica apropriada pela aristocracia, recolheu as vestes de séculos passados, antes depurando os trajes cortesãos que tendendo para a miséria abjeta. Esse campo de forças equilibrado e periclitante configurou um cosmos conservador, cerimonioso, arredio, enfático na auto-estima. Nele, a festa exclui, dado o esmero exigido pela religiosidade e consciência das pessoas, roupas andrajosas, chapéus e calçados rotos, mimetismos "western", arrebiques "típicos".
É conhecida a saga da figura deplorável, maltrapilha, banguela, descalça, bem datada social e politicamente. Nos inícios do século 20, aderindo à doutrina racial e climática dos males nacionais, Monteiro Lobato construiu o roceiro esfarrapado, doente, subnutrido, ignorante, parceiro das cidades mortas. Desenhou o Jeca Tatu, "espécie degenerada", parasita preguiçoso, incapaz de civilização. Contra o romantismo, deu violentas cores malfazejas ao "piolho" das fazendas e acentuou a "praga" de seus afazeres, ligando a tibieza física e moral do Jeca às facilidades da terra.
Com linguagem assustadoramente violenta, o "modernista" repetia uma sentença tão velha, pelo menos, quanto o "Corpus Hippocraticum". Depois, penitencia-se e, acolhendo o ideário higienista, detecta os males nacionais no ambiente insalubre e no homem doentio, curáveis pelo conhecimento científico apto a projetá-los na civilização. A propaganda educativa completaria as intervenções técnicas. Em que pesem sua valiosa eficácia efetiva e intenções redentoras, esses paladinos deram argumentos que permitiram legitimar a alegação de incapacidade, em vastos setores da população, para o exercício dos direitos civis e políticos. (Tânia de Luca; R. A. dos Santos).
Em Lobato, os tropos da morbidez substituíram os da indolência, mas persistiram figurando o ser inferior que a inépcia malsinou. Sem surpresas, em sua trajetória, a representação do Jeca prendeu-se a interesses do capital e aproximou-se do ideário vigente nas esquerdas. Lobato firmou a imagem do roceiro atrasado em sua choça miserável, com sua família suja e empestada, as criações magricelas. O milagroso Biotônico Fontoura curou-os e dirigiu rumo ao progresso: tornaram-se prósperos, sadios, gordos e risonhos, com boas casas, roupas e sapatos. A propaganda daquele tônico inscreveu-se nos ideais de industrialização e aproximou-se das alianças com a burguesia nacional, temas nucleares na ideologia que opunha atraso e progresso, preconizando a passagem de etapas retrógradas para adiantadas e modernas. Nessas alturas, o Jeca recebeu as tintas do trabalhador explorado, tendo percorrido, na pena de seu criador, de mea culpa em mea culpa, todas as posições ideológicas vigentes em seu tempo (M. Lajolo).
No vai-e-vem das modas doutrinárias, um circuito completo reuniu crenças dominantes na construção da quimera, inclemente de estereótipos e preconceitos, do homem rústico. Mazzaropi explorou, com adição de outros monstros mais ladinos, esse prato feito para o ridículo. Tal é o retrato doloroso, feito com representações falazes, da história social brasileira que Lula e Marisa acolheram (a família Jeca), encarnando pseudocaipiras com novos arrebiques: o xadrez imitando "country", os remendos em "patchwork", a trança loira.
Contra o labéu de que o presidente carece de escolaridade, argumentou-se que a sabedoria dispensa diplomas. Mas sua insciência transcende esse ponto, é substancial: ignora a cultura do povo e se apraz com seu deslustre. Lula, em explícito despotismo, afirma-se "pai" da população, mas desrespeitou sua "prole" ao dar a festança desairosa.
Não deveria ser este, o caso de Lula, cercado de intelectuais. Não haverá, à sua volta, um só historiador qualificado para expor a violência da dominação inerente àquela fantasmagoria, ou pelo menos um cristão capaz de apontar sua pungente falta de caridade? Nesse clima, poderá o governante aprender algo sobre a dignidade de toda a cidadania? Quem sabe, então, trate os contribuintes com espírito republicano, grande milagre de Santo Antônio. No entrementes, atroam responsos e foguetórios louvando o reles salário mínimo.

Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular do Departamento de Filosofia da Unicamp e do Departamento de Filosofia da USP.


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Márcio Lopes de Freitas: Cooperativismo e globalização
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.