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TENDÊNCIAS/DEBATES
Ciência, bruxas e raças
SÉRGIO DANILO PENA
Certamente, a humanidade do futuro não acreditará em raças mais do que acreditamos hoje em bruxaria
DO PONTO de vista biológico,
raças humanas não existem.
Essa constatação, já evidenciada pela genética clássica, hoje se tornou um fato científico irrefutável
com os espetaculares avanços do Projeto Genoma Humano. É impossível
separar a humanidade em categorias
biologicamente significativas, independentemente do critério usado e da
definição de "raça" adotada. Há apenas uma raça, a humana.
Sabemos, porém, que raças continuam a existir como construções sociais. Alguns chegam mesmo a apresentar essa constatação com tom de
inevitabilidade absoluta, como se o
conceito de raça fosse um dos pilares
da nossa sociedade. Entretanto, não
podemos permitir que tal construção
social se torne determinante de toda a
nossa visão de mundo nem de nosso
projeto de país.
Em recente artigo na "Revista
USP", eu e a filósofa Telma Birchal
defendemos a tese de que, embora a
ciência não seja o campo de origem
dos mandamentos morais, ela tem
um papel importante na instrução da
esfera social. Ao mostrar "o que não
é", ela liberta pelo poder de afastar erros e preconceitos. Assim, a ciência,
que já demonstrou a inexistência das
raças em seu seio, pode catalisar a
desconstrução das raças como entidades sociais. Há um importante precedente histórico para isso.
Durante os séculos 16 e 17, dezenas
de milhares de pessoas foram oficialmente condenadas à morte na Europa pelo crime de bruxaria. As causas
dessa histeria em massa são controversas. Obviamente, a simples crença
da época na existência de bruxas não
é suficiente para explicar o ocorrido.
É significativo que a repressão à
bruxaria tenha vitimado primariamente as mulheres e possa ser interpretada como uma forma extrema de
controle social em uma sociedade dominada por homens. Mas, indubitavelmente, a crença em bruxas foi essencial para alimentar o fenômeno.
Assim, podemos afirmar que, na sociedade dos séculos 16 e 17, as bruxas
constituíam uma realidade social tão
concreta quanto as raças hoje em dia.
De acordo com o historiador Hugh
Trevor-Roper, o declínio da perseguição às bruxas foi em grande parte causado pela revolução científica no século 17, que tornou impossível a crença continuada em bruxaria.
Analogamente, o fato cientificamente comprovado da inexistência
das "raças" deve ser absorvido pela
sociedade e incorporado às suas convicções e atitudes morais.
Uma atitude coerente e desejável
seria a valorização da singularidade
de cada cidadão. Em sua individualidade, cada um pode construir suas
identidades de maneira multidimensional, em vez de se deixar definir de
forma única como membro de um
grupo "racial" ou "de cor".
Segundo o nobelista Amartya Sen,
todos nós somos simultaneamente
membros de várias coletividades, cada uma delas nos conferindo uma
identidade particular.
Assim, um indivíduo natural de
Ruanda pode assumir identidades
múltiplas por ser, por exemplo, africano, negro, da etnia hutu, pai de família, médico, ambientalista, vegetariano, católico, tenista, entusiasta de
ópera etc. A consciência de sua individualidade e dessa pluralidade lhe permite rejeitar o rótulo unidimensional
de "hutu", que, como tal, deveria necessariamente odiar tútsis.
Pelo contrário, em sua pluralidade
de identidades ele pode compartilhar
interesses e encontrar elementos para simpatia e solidariedade com um
outro indivíduo que também é ruandês, negro, africano, colega médico,
tenista e cantor lírico, e que, entre
tantas outras identidades, também é
da etnia tútsi.
Em conclusão, devemos fazer todo
esforço possível para construir uma
sociedade desracializada, na qual a
singularidade do indivíduo seja valorizada e celebrada e na qual exista a liberdade de assumir, por escolha própria, uma pluralidade de identidades.
Esse sonho está em perfeita sintonia com o fato, demonstrado pela genética moderna, de que cada um de
nós tem uma individualidade genômica absoluta que interage com o ambiente para moldar a nossa exclusiva
trajetória de vida.
Alguns certamente vão tentar rejeitar essa visão, rotulando-a de elitista e
reacionária. Mas, como ela é alicerçada em sólidos fatos científicos, temos
confiança de que, inevitavelmente,
ela será predominante na sociedade.
Talvez isso não ocorra em curto prazo
aqui no Brasil, principalmente se o
Congresso cometer a imprudência de
aprovar o Estatuto da Igualdade Racial, o qual forçará os cidadãos a assumirem uma identidade principal baseada em cor.
Um pensamento reconfortante é
que, certamente, a humanidade do
futuro não acreditará em raças mais
do que acreditamos hoje em bruxaria.
E o racismo será relatado no futuro
como mais uma abominação histórica passageira, assim como percebemos hoje o disparate que foi a perseguição às bruxas.
SÉRGIO DANILO PENA, 58, médico, doutor em genética
humana, é professor titular de bioquímica na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Foi presidente do Programa Latino-Americano do Genoma Humano (1992-1994) e presidente do Comitê Sul-Americano do Programa de Diversidade Genômica Humana (1994-1996).
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