São Paulo, segunda-feira, 02 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Quem mente?

DENIS LERRER ROSENFIELD


É cada vez mais urgente que o PT faça uma verdadeira revisão de seus conceitos e de suas práticas


O espanto de Carlos Tibúrcio, chefe de redação da campanha Lula Presidente ("Painel do Leitor", pág. A3, 28/8), a propósito de artigo meu ("Tendências/Debates", 23/8) é compreensível, pois é tática do partido furtar-se à discussão. Incompreensível, porém, são as qualificações ("artigo mentiroso e insultuoso"), pois nada mais fiz do que apontar as incoerências do PT e as práticas que qualifiquei de próprias de "movimentos totalitários".
No artigo, utilizei essa expressão no sentido de H. Arendt, que distingue movimento totalitário de Estado totalitário. O movimento totalitário consiste no processo de desestruturação do Estado e da democracia, seguindo, nesse estágio, as regras estatais e democráticas, porém deturpando-as e as obedecendo nos seus limites, quando não além deles. Esse processo escalona-se, assim, num amplo espaço de tempo. Ele pode também ser chamado de "revolucionário", se utilizarmos os vocabulários marxista e comunista em suas diferentes versões.
O Estado totalitário, por sua vez, é o resultado desse processo, sob a forma da pura dominação violenta, escancarando o que antes se ocultava, com a abolição subsequente da democracia, das liberdades e do Estado de Direito.
Procurei alertar para um processo esquerdista, em curso no Rio Grande do Sul, que poderia ser eventualmente transposto para todo o país, tendo como consequência o enfraquecimento das instituições democráticas e o aparelhamento partidário e ideológico do Estado. Assinalei que há traços de "movimento totalitário" em:
a) Processos reiterados a jornalistas e intelectuais, como forma de calar as vozes discordantes. Os processos de três anos e meio do governo Olívio Dutra representam mais do que a soma de todos os conflitos entre governadores e a imprensa desde 1947, configurando uma criminalização da liberdade de opinião;
b) O PT defende a extensão do Orçamento Participativo à administração central, o que equivale a transpor o controle partidário para o núcleo da esfera estatal. A prática totalitária confunde as esferas de governo e de partido, estabelecendo o império deste último;
c) O Fórum Social Mundial, apresentado como um "outro mundo possível", tem parcialmente se caracterizado por repetir a experiência das Internacionais Comunistas, advogando pela supressão do "capitalismo", da Alca e do FMI, criando uma identificação negativa, a do inimigo comum, corporificado pelos Estados Unidos;
d) Durante o primeiro fórum, as Farc foram não somente convidadas, como recebidas no Palácio Piratini, do governador. No segundo fórum, desenvolveram atividades paralelas, apoiadas pelo PC do B, aliado "democrático e popular" do PT, apregoando a luta armada na Faculdade de Direito da UFRGS;
e) A afinidade do PT com Cuba é amplamente conhecida, mostrando uma forma de compactuar com uma das ditaduras mais sangrentas do planeta;
f) O apoio ao MST, ligado estreitamente ao partido. Esse movimento tem adotado uma faceta cada vez mais política, com invasões sistemáticas de terras, fábricas e prédios públicos. Ações desse tipo desrespeitam o direito de propriedade e os princípios de organização do Estado;
g) O controle das consciências das crianças, mediante cartilhas, nas escolas públicas e nos assentamentos do MST;
h) O aparelhamento da Polícia Militar, cooptando os seus oficiais superiores via alteração da hierarquia por promoções exclusivas por "mérito", ou seja, por opção partidária.
Coloca-se a questão da mentira como forma de dominação. Não esqueçamos que os intelectuais compactuaram com os crimes do stalinismo, ocultando a existência do Goulag. Toda crítica era considerada produto da propaganda imperialista. A conivência com esse tipo de prática integra uma experiência que procura esconder o que faz ou pretende. Não estaríamos presenciando um tipo de conivência com as práticas petistas, em que as incoerências doutrinárias são atribuídas a uma "boa intenção", em que são escondidas práticas "revolucionárias", em que o discurso de hoje não guarda relação com o de ontem?
O "movimento totalitário" requer tempo para se desenvolver. Ele tem, ademais, como condição o assentimento das pessoas que, consciente ou inconscientemente, terminam por compactuar com tais práticas. A desqualificação dos que criticam pertence a esse processo. Na Alemanha e na ex-URSS, as pessoas foram aceitando como moeda corrente falsificações, incoerências e contradições. Não quiseram ver o que acontecia. No entanto mais vale abortar um processo desse tipo no início, antes que se torne irreversível.
No caso da ex-URSS, o seu charme residia no discurso pela inclusão social. Já o jogo do PT é duplo: de um lado, ganha curso o movimento "revolucionário", de outro, o partido o apresenta como sendo favorável aos excluídos. Quem é contra o PT se torna contra a justiça social. Utilizando-se da "boa consciência" dos que almejam uma melhoria das condições sociais de nosso povo, o partido vai estabelecendo a sua dominação.
A pergunta "qual Lula?" poderia ser traduzida por "qual partido?", pois Lula, eleito, não teria a autonomia própria de um presidente, mas seria o instrumento do partido. No RS e em Porto Alegre, vitrines nacionais do PT, os prováveis secretários são submetidos a um conselho deliberativo, constituído por tendências do partido, que os escolhem.
Imaginem Lula presidente: ele reuniria as tendências do partido, segundo a sua representatividade, e submeteria à sua apreciação a escolha dos ministros. Considerando que pelo menos um terço do partido é formado por correntes "revolucionárias", quais pastas seriam oferecidas a eles? Defesa, Justiça, Reforma Agrária ou Educação?
Eis por que é urgente que o PT faça uma verdadeira revisão de seus conceitos e de suas práticas, adotando uma postura reformista e afastando os seus quadros revolucionários. Do contrário, teremos só a maquiagem em curso. Compre quem quiser, pois o produto é publicitário.


Denis Lerrer Rosenfield, 50, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).




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